Jair Putzke: “Cativar o estudante pelas ciências é imprescindível”
Se há uma palavra que define a história de vida do vera-cruzense Jair Putzke, 54 anos, esta é: ciência. De sua terra natal ao grande mundo, o que engloba a Antártica e a China, ele mira o seu entorno com curiosidade e ternura. E toda essa caminhada do filho de dona Sidelga e de seu Rani, mano do Neuri, do Glênio e do Mauri, iniciou-se na Linha Um, muito próximo do Rio Pardinho.
Casado com a também professora, pesquisadora e cientista Marisa, é pai de Anna Carolina (cursando Arquitetura) e Josué (que optou por Engenharia Elétrica). Fez o primário na escola São Sebastião (com a professora Maria Olívia Kern), o fundamental no Polivalente e o médio na escola Vera Cruz. Cursou mestrado em Recife (PE) e doutorado na Ufrgs.
Por 25 anos esteve vinculado à Unisc, como professor, entre 1992 e 2017, quando então ingressou na Unipampa, em São Gabriel, na qual agora atua. E planeja um pós-doutorado na China. Tem 27 livros publicados, desde o primeiro, sobre cogumelos, em 1988, com atenção especial a fungos, além de mais de uma centena de artigos científicos. Sua produção é voltada a público de todas as idades, estimulando o espírito científico também junto a crianças.
Já há mais de três décadas integra as equipes de cientistas do Programa Antártico Brasileiro, que pesquisam junto à Estação Brasileira Comandante Ferraz, na Antártica, e visitou esse continente 27 vezes. Nesta entrevista, avalia a importância do estímulo continuado à formação científica para cada pessoa.
Gazeta do Sul – O senhor já tem longa trajetória de dedicação ao ensino de Ciências. Como o senhor avalia o ambiente para a formação de novos profissionais cientistas em âmbito de Brasil?
Jair Putzke – A formação do cientista começa com as crianças recebendo informações de ciências do seu meio, da família, da comunidade e dos meios de comunicação. Em biologia, começa também quando a criança se interessa pela natureza, observando tudo; em engenharia muitas vezes desmontando tudo para descobrir como funciona, mas sempre por diversão. A admiração pela natureza é de cada um quando pequeno, mas vai sendo perdida ao longo do tempo, até que finalmente a pessoa não se importa mais. No momento em que a pessoa ainda se admira com a natureza, é a chance de ser capturada pelo mundo científico, de ficar sabendo como funciona, tal como o que desmontava tudo quando pequeno. E esse momento é na escola.
Cativar o aluno pelas ciências é imprescindível para que ele descubra quão intrincada é a natureza e que um elo perdido pode ser uma parte tão importante – um parafuso perdido, por exemplo – que nunca mais a máquina remontada funcionará corretamente. Se a escola conseguir demonstrar à criança como é prazeroso fazer ciência, ela se apaixonará ainda mais pela área e quem sabe até se transforme num cientista. Darwin cultivava flores, fazia coleções de insetos e de tantas outras coisas da natureza quando criança, mas teve dificuldades na escola, pois esta tentou tirar o prazer que tinha em fazer ciência, fazendo-o decepcionar-se com muitas áreas, incluindo química e matemática.
Dar à criança a experiência de ser cientista, pelo menos na escola, é permitir-lhe entender o mundo científico e aceitá-lo com naturalidade no futuro, seja com técnicas de redescoberta ou experimentação livre de fato, mas as escolas precisam estar aparelhadas. Precisam ter um local específico para fazer ciência, ou pelo menos um momento específico para tal, seja tirando a vidraria e os materiais de uma caixa ou num laboratório. Eu fiz minha carreira toda de cientista precisando quase somente de um microscópio e até esse equipamento pode ser construído facilmente com coisas jogadas fora, muitas vezes. Então, o que se precisa hoje, e muito, é criar uma perspectiva de que a ciência é boa, que necessitamos dela em todas as áreas e seus resultados são úteis.
O brasileiro é um dos que mais acreditam na ciência no planeta, graças ao trabalho feito pela escola até agora. É inimaginável ver que o que menos acredita em ciência é o japonês. Como assim? O que não foi feito lá que fizemos no Brasil? Foi o resultado do trabalho dos professores! Imagina se conseguíssemos preparar melhor os nossos professores para trabalhar o tema; aos poucos incentivaríamos os estudantes a acreditar ainda mais em ciência, em querer ser cientistas, e transformaríamos o Brasil, com certeza.
Que recado o senhor daria aos estudantes das novas gerações que talvez alimentem o sonho de também se tornarem cientistas?
Fazer ciência não é fácil, mas para isso é preciso desenvolver uma série de habilidades e atitudes. Entretanto, todas elas podem ser conseguidas na escola. O jovem interessado deve, antes de tudo, também aprender línguas. Com os recursos existentes hoje, é muito fácil aprender muitas, mas depende do interesse de cada um e do equipamento e da internet disponível. Mas é muito fácil em relação à minha época. Só se aprende mesmo uma língua quando jovem. Portanto, aproveite o tempo para isso também. Se a família sabe alguma língua, mesmo que em um dialeto, aproveite e passe horas treinando. Lembre-se que na Alemanha se falam mais de cem dialetos de alemão e o que existe aqui vai funcionar lá. Mas aprenda espanhol também, já que todos os nossos vizinhos falam esse idioma.
Ao mesmo tempo, se puder, aprenda chinês. A ciência que eles estão fazendo logo vai superar as de outros países (em várias áreas já está) e manter relações com essa superpotência pode ser importante, conhecendo o idioma. Aprenda tudo o que for possível da cultura de outros países para não cometer gafes, extraia o que for possível sobre esses temas dos seus professores de História e Geografia. Saiba detalhes dos países para trocar ideias com os nativos, que vão admirá-lo por conhecer algo de suas terras. Aprenda a trabalhar em grupo, mesmo com todas as diferenças entre os colegas. Aprenda a ler, interpretar e escrever o mais corretamente possível. Faça muitos resumos, é importante saber resumir um texto; considere transformar um livro em no máximo 300 palavras.
Conheça o método científico e aplique-o ao seu cotidiano. Resolva problemas usando esse método. É prático e leva a resultados muito melhores que o conhecimento popular. Leia sobre ciências e feitos, sobretudo dos cientistas mais antigos. Encontre um que possa lhe servir de modelo e leia sua biografia. Adapte aspectos da vida dele à sua. Se puder, encontre um filme sobre o assunto. Desenvolva a honestidade e as boas práticas. Gaste bastante tempo da juventude com sua família e pegue deles esses conceitos.
Faça muitos exercícios físicos, tais como os proporcionados nas aulas de educação física. A vida inteira eles serão úteis e a todo momento poderá recuperar o seu preparo físico ideal, considerando o que praticou nas aulas de educação física. Desenvolva ao máximo a inteligência, o que é obtido praticando muito a matemática. Todos os exercícios desenvolvem o raciocínio lógico, fundamental para a vida de cientista também. Ao mesmo tempo, explore a filosofia e os temas sociais, e preocupe-se em melhorar a vida dos outros pelas pesquisas, melhorar o seu país e o planeta. Todos dependeremos do seu trabalho; você será importante, não importa em que área das ciências.
O que é mais importante para um cientista, em qualquer tempo? O que faz um cientista ser bom?
No momento, estou orientando quatro doutorandos e cinco mestrandos. Vejo em todos eles habilidades que desenvolveram na escola e são importantes agora, para a vida científica. Portanto, aproveitar o tempo de escola fundamental e média, como falado acima, e escolher logo o tema de faculdade já é um bom começo. Estudar muito, pois o estudo ninguém consegue tirar de você. Prepare o seu cérebro para um raciocínio lógico e aplicando o método científico, mas desenvolva também a criatividade (isso é algo muito evidente nos brasileiros). Seja crítico e discuta resultados de ciência com colegas e professores. Ninguém sabe tudo, mas uma boa discussão pode garantir bons resultados sobre temas diversos, e ler muito ajuda pra caramba. Leia tudo e não só o que mais lhe agrada. Tire um tempo para deixar o cérebro descansar. Estou lendo poesias de Pablo Neruda, um ícone chileno. Sempre se prepare para mais opções no futuro, mas não se esqueça de sonhar. As pessoas jovens, ao que me parece, não sonham mais. Sonhe, mas tente também sonhar em grupo, pois, como diz Raul Seixas: “sonhar junto já é realidade”.
Quais as linhas de pesquisa às quais o senhor se dedica hoje?
Trabalho com ciência básica, principalmente identificação de plantas e fungos. Nesse último grupo, sou especialista em cogumelos e levo minha pesquisa a leigos interessados em identificá-los para uso como alimento. Cogumelos são um alimento completo, e muitos os têm a sua volta e não sabem que dá para comer (mas existem muitos venenosos, então precisa conhecer). Então, transformo minha pesquisa em extensão, passando essa informação aos interessados.
É inadmissível um país com tamanha diversidade em cogumelos não aproveitar quase nada. Por isso, trabalhei o tema no projeto Brasil Biomas, com Richard Rasmussen, com o qual atingimos mais de 430 mil visualizações. Popularizar os usos para os cogumelos tornou-se um de meus trabalhos preferenciais. Mas também busco popularizar as ciências e desenvolver formas novas de conseguir isso. Nesse sentido, foi feita a réplica do Navio Beagle, de Charles Darwin, que agora está sendo preparado para ser itinerante.
Na Antártica, as pesquisas com fungos e musgos continuam trabalhando com o básico e o aplicado, dando auxílio a projetos em outras áreas. Adoro formar novos cientistas, e a cada ano saem alguns com mestrado e doutorado em todo o Brasil. No momento, oriento alunos em São Gabriel, em Goiás, na Amazônia e em Minas Gerais, por exemplo. Ao mesmo tempo, há o trabalho infindável em educação ambiental. Acredito que isso também esteja rendendo bons frutos, pois o jovem de antes que está assumindo agora tem uma visão muito mais associada com as questões ambientais. Não existe educação sem que ela seja ambiental.
Como o senhor avalia a infraestrutura, nos diversos níveis de ensino, para uma eficiente preparação das novas gerações?
No Brasil, ao contrário de muitos países desenvolvidos, o cientista espera sempre que o financiamento das pesquisas venha direto do governo. Então, sempre que há cortes, cria-se um cenário de que tudo está acabado e a ciência vai parar. Na Unisc, onde atuei por 25 anos, aprendi a obter recursos de empresas. Esse é o futuro! As empresas precisam ser atraídas para as universidades, pois podem ser mais bem apoiadas por pesquisadores com grande experiência.
Associar a pesquisa com o setor empresarial garantirá um progresso sem precedentes. O que seria do setor do tabaco se não trabalhássemos desde 1992 com as empresas, o SindiTabaco e o Mapa para provar que um fungo existente no tabaco não seria um problema para exportarmos esse produto para a China e outros países! Até hoje, a China acredita no trabalho que é feito com todos esses aliados e o agricultor, entregando um produto confiável para esse grande consumido. Isso só aconteceu quando empresas e entes associados foram procurar uma solução com as universidades.
Ganham o País e as mais de 300 mil famílias envolvidas no trabalho, além da universidade, que mantém suas pesquisas com o apoio das empresas. Com esse exemplo, quero demonstrar como vejo o futuro da ciência: cientistas e empresas associados para resolver problemas, garantindo a produção de algo cada vez melhor em todos os setores.
O que o senhor entende que, em termos científicos, falta ser promovido ou estimulado, por exemplo, em Santa Cruz e na região?
Acredito que o povo do Vale do Rio Pardo tem algumas coisas incríveis que são pouco valorizadas pelos locais. Somos ricos em florestas e não nos damos conta disso. O que elas nos proporcionam? Não é somente o conforto ambiental ou a beleza cênica. Árvores transmitem paz e tranquilidade, por exemplo. Então, quanto mais árvores, mais disso teremos. Recuperar áreas degradadas deve ser um esforço de todos.
Vi como a China recuperou suas florestas, plantando árvores em todo canto em números que são mais do que o resto do planeta somado. E continuam! Nós poderíamos fazer o mesmo, nos unindo e transformando a região numa área livre de emissões de carbono, só pelo número de árvores que plantamos. Aí vejo muitos reclamando do resíduo deixado pelas árvores e não se importam com o lixo que nós jogamos por aí. Olha que lindo Cinturão Verde temos, onde a cidade consegue se integrar nele por tantos anos e ele ainda se mantém firme.
Arborizar a cidade, trazer de volta os pássaros, criar e reestruturar praças e passeios é fundamental, e os cientistas da região podem ajudar. O que plantar, como plantar e como manter. Imagina que Nova York toma água direto do rio, sem tratamento algum, porque recuperou e estimulou os agricultores rio acima a cuidarem do rio. Nós poderíamos estar fazendo o mesmo. Se não fosse um trabalho de longa data da Universidade de Santa Cruz do Sul com as prefeituras, empresas, promotoria e população em geral, provavelmente o Rio Pardinho estaria seco a maior parte do ano. Quem resolveu e garantiu água para a região toda? Essa união entre cientistas, empresas e a comunidade.
Nós podemos resolver tudo se nos associarmos com ciência. Até mesmo o futuro hídrico para uma região. Mas o verde precisa entrar na sala de aula e no pátio das escolas. Os alunos em formação têm que aprender a cultivar plantas para o seu bem-estar no futuro. Mas, quando dou palestras em salas sem plantas, passo em corredores sem plantas, pátios sem árvores, como posso criar no estudante o prazer por elas? Devemos levar a ciência a criar em cada um amor sem igual pela natureza. Só assim garantiremos um futuro próspero ao Vale do Rio Pardo.
Que sonho o senhor alimenta em relação ao universo científico?
Eu queria muito que o Brasil fosse mais integrado, que escolas de todo o País trocassem informações. Que resolvêssemos mais rapidamente nossos problemas ambientais. Muitos esperam isso do governo, o que é ruim. Quem resolve os problemas ambientais é a comunidade afetada, e, se cada comunidade fizer sua parte, o todo será resolvido. Então, falta uma ciência mais voltada a resolver problemas e não uma ciência que somente critica, o que por si só não leva a nada.
Faltam novidades na área da educação ambiental, pois as pessoas se cansaram de escutar as mesmices. Aí passam a estar conscientes, mas não sensibilizadas para resolver o problema. Sonho que algum dia a juventude se junte em finais de semana para resolver problemas ambientais locais em seus grupos, festejando no final os seus resultados, mas sem exigir nada em troca, nem reconhecimento: “a gente fez porque precisava ser feito, não para se exibir”. Esse é o sonho.
Que momento foi mais marcante para o senhor em sua carreira como professor e cientista?
Talvez o momento mais importante foi me dar conta de que nas ruas, quando alguém me reconhece, me chama de professor. Nenhuma outra profissão, quando tu encontras alguém pelo caminho e que conheça, tu chamas a pessoa pelo que ela faz. Só o professor é chamado por todos de professor na rua. Isso é o maior orgulho que tenho da minha carreira: eu sempre quis ser, sempre fui e sempre serei o melhor professor possível. E agradeço por reconhecerem isso nas ruas.
Um, dia um aluno me parou antes de embarcar em seu ônibus e me chamou.. “Professor, que prazer em revê-lo! Por favor, venha aqui que quero lhe mostrar algo.” Na formatura dos meus alunos, eu tinha dado uma folha de trevo encadernado com fita transparente para lhes trazer sorte na vida. Ele abriu a agenda e me mostrou o trevo que ainda estava lá, a fita toda amarelada, como marcador de página, dizendo: este trevo me deu muita sorte. A maior sorte dele foi a preparação que teve de todos os seus professores, a sorte de poder ter estudado.
Outro momento marcante foi um filme preparado por meu irmão Neuri Putzke para uma homenagem no meu aniversário. Eles entrevistaram minha professora do Fundamental, Maria Olívia Kern, e lhe deram um de meus livros para olhar. Depois de ela folhear um pouco, perguntaram se sabia quem era o autor. Ela respondeu logo: “Mas é o Jair Putzke, um de meus melhores alunos de todos os tempos”. E ela tem Alzheimer e não reconhece quase ninguém mais. Foi a coisa mais linda que me aconteceu: minha professora inicial, a quem eu mais adorei entre todas, lembra de mim. Isso não tem preço.
Que mensagem o senhor deixa para todos os que talvez alimentem seguir nas Ciências?
O que estimula o jovem é sonhar, interessar-se por mais de uma área e se preparar. Estudar tudo o que oferecem na escola, não pela obrigação para as provas, mas como um detalhe que será importante para a vida. Stephen Hawking, um dos maiores cientistas de todos os tempos, disse que a matemática é o que nos liga à natureza. Imagina! Até para a biologia a gente precisa, portanto, da matemática. E às vezes nos irritamos tanto com essa disciplina!
E para quem já está em curso de graduação nessa área?
Devemos resolver problemas da sociedade e para a sociedade. Quem vive só para si faz um favor ao mundo quando morre, já dizia um filósofo importante. Prepare-se para ser um cientista que viva mais para os outros, pelos outros.
Quer receber as principais notícias de Santa Cruz do Sul e região direto no seu celular? Entre na nossa comunidade no WhatsApp! O serviço é gratuito e fácil de usar. Basta CLICAR AQUI. Você também pode participar dos grupos depolícia, política, Santa Cruz e Vale do Rio Pardo📲 Também temos um canal no Telegram! Para acessar, clique em: t.me/portal_gaz. Ainda não é assinante Gazeta?Clique aquie faça sua assinatura agora!
Publicidade
Naiara Silveira
Jornalista formada pela Universidade de Santa Cruz do Sul em 2019, atuo no Portal Gaz desde 2016, tendo passado pelos cargos de estagiária, repórter e, mais recentemente, editora multimídia. Pós-graduada em Produção de Conteúdo e Análise de Mídias Digitais, tenho afinidade com criação de conteúdo para redes sociais, planejamento digital e copywriting. Além disso, tive a oportunidade de desenvolver habilidades nas mais diversas áreas ao longo da carreira, como produção de textos variados, locução, apresentação em vídeo (ao vivo e gravado), edição de imagens e vídeos, produção (bastidores), entre outras.