Deixar de lado a correria das cidades, a poluição, o barulho dos veículos e a violência dos centros urbanos e viver em maior harmonia com a natureza, com menor influência do relógio e mais do meio ambiente, podendo produzir o próprio sustento. Seja por filosofia de vida ou por necessidade, esse é o objetivo de muitas pessoas, nem todas com a iniciativa ou o conhecimento necessário para mudar de vida, juntar seus pertences e rumar ao meio rural.
Chamados de “neorrurais”, a população que deixa as grandes cidades para o interior, fazendo o trajeto inverso ao fenômeno conhecido como êxodo rural, já pode ser classificada como uma tendência do século 21, em tempos de pandemia mundial, influenciada pelas aglomerações nas zonas urbanas.
Mestre em Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Bruna Karpinski, jornalista e assessora de comunicação da Associação dos Fiscais Agropecuários do Rio Grande do Sul (Afagro) e do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Executivo do RS (Sintergs), dedicou-se a entender esse movimento de pessoas que saíram de seus lares nas cidades para fixar residência no meio rural em busca de um novo estilo de vida. A pesquisa foi o assunto de sua dissertação de Mestrado, defendida em março de 2020 na Ufrgs.
Publicidade
LEIA TAMBÉM: Soja vai injetar R$ 1,6 bilhão na economia da região
O fenômeno ainda é pouco conhecido, e os estudos sobre o tema são escassos, o que torna a pesquisa da jornalista gaúcha uma das poucas fontes sobre o tema. Segundo Bruna, o interesse pela pesquisa partiu de sua experiência como repórter em periódicos da Capital gaúcha, onde teve contato com a editoria rural.
Na época, em 2016, um colega de trabalho comentou que um parente havia deixado a conturbada vida na cidade, onde trabalhava com construção civil, para produzir alimentos orgânicos no campo. Desde então, Bruna passou a interessar-se pela questão. Foi quando deparou-se com o termo “neorrurais”.
Publicidade
“Quando eu falava do tema da pesquisa, uns acreditavam, outros não. Eu fiquei feliz com o resultado do estudo, porque a pesquisa mostra que essas pessoas de fato existem. A coleta de dados foi em 2019, ainda antes da pandemia, e acho que a tendência, com a pandemia, é que esse movimento se acelere”, conta.
LEIA TAMBÉM: Projeto facilita crédito para filhos de agricultores
Com o trabalho Neorrurais agroecologistas e o desenvolvimento rural sustentável: o caso das produtoras e dos produtores agroecológicos da RAMA, Bruna entrevistou 22 pessoas que deixaram a cidade para viver no campo, em 17 diferentes propriedades de produtores ligados à Associação dos Produtores da Rede Agroecológica Metropolitana. A pesquisa procurou entender as motivações e conhecer quem eram as pessoas que decidiram deixar a zona urbana em busca de uma vida no meio rural.
Publicidade
Ela traçou um perfil dos participantes da pesquisa. “O que chama a atenção é que a maioria tem nível superior, mais de 90%. Só uns dois ou três dos 22 pesquisados não tinham curso superior, o que difere muito do produtor rural, que em geral não tem formação acadêmica e os filhos sim estão indo para a cidade estudar.”
Entre as motivações apontadas pela pesquisa, o principal objetivo de quem buscou a vida no campo foi a questão ambiental, relacionada à saúde. A maioria dos entrevistados relatou ter deixado a cidade em busca da qualidade de vida que a zona rural proporciona, com uma rotina menos estressante em relação ao dia a dia das cidades. Em segundo lugar entre as motivações de quem fez o movimento de migração urbano-rural está a intenção de cultivar o próprio alimento, e em terceiro, a busca pelo descanso e o ar puro do campo, segundo apurou a pesquisa.
A Gazeta do Sul saiu em busca de casos de neorrurais no Vale do Rio Pardo e encontrou três exemplos de pessoas que escolheram migrar para o campo para ter um novo estilo de vida, produzindo ou refugiando-se da correria da cidade.
Publicidade
Há quase três anos, o professor aposentado Olgário Vogt deixou o Centro de Santa Cruz do Sul para ir morar em Linha Pinheiral. Hoje aos 60 anos de idade, o educador, que passou 29 anos dando aulas na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), se diz satisfeito com a decisão de adquirir uma área de 5 hectares próximo da RSC-287, a cerca de 10 quilômetros da zona urbana.
LEIA TAMBÉM: Extensão rural na pandemia é desafio da Asae
Desde setembro de 2018, Olgário passou a morar na zona rural. A vida no campo foi uma novidade. Seus pais fizeram o percurso inverso, deixando o interior para residir na cidade na juventude. O ex-professor da Unisc relata que teve que aprender aos poucos os segredos da lida no campo.
Publicidade
Atualmente, Olgário cria galinhas, tem algumas cabeças de gado e cultiva verduras, milho, batata, pastagem para os animais e frutas como laranja e limão. A atividade não é para seu sustento, apesar de, no ano passado, o “aprendiz de camponês”, como ele mesmo se intitula, ter produzido mais de 3 mil ovos com as galinhas que cria.
Para o ex-professor da Unisc, a vida no campo lhe rende melhores dias e garante uma vida mais saudável e tranquila. “Eu me preparei psicologicamente para o momento. Não é para qualquer um. Na cidade existe um tipo de vida. Tu vem para o interior e precisa estar com a cabeça pronta para isso.”
O educador, que passou quase metade da vida dando aulas, hoje aproveita um estilo que lhe traz paz e tranquilidade, e está convicto que sua decisão foi acertada. “É um aprendizado para mim esse contato com a natureza. Se eu permanecesse na cidade, iria ficar num apartamento, mais ou menos como aquela música do Raul Seixas: ‘Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar’.”
A 30 quilômetros do Centro de Santa Cruz do Sul, o casal Carlos Miguel de Moraes e Gabriela Schmitz Gomes mantém o Sítio Surucuá, um espaço voltado à educação agroecológica na localidade de Albardão, em Rio Pardo. Antes da pandemia, o local recebia alunos dos ensinos Fundamental e Médio e também universitários.
Professor da rede municipal, Carlos Miguel, de 46 anos, relata que a escolha pelo interior foi principalmente uma motivação econômica. Em 2014, o casal montou sua residência em um local que pertencia aos pais dele. A área da família ocupa cerca de 80 hectares, a maior parte arrendada de outros produtores.
LEIA TAMBÉM: FOTOS: um pedaço do século 19 preservado em Vera Cruz
Engenheira florestal, Gabriela conta que a mudança não foi fácil. O casal, que tem duas filhas e um filho, deixou o interior do Paraná para voltar para a região e recomeçar no meio rural. “O início é bem difícil. Tu não te considera um agricultor, demora um tempo para achar teu lugar.”
Em uma área próxima à residência – o casal mora em uma bela construção, reformada a partir de dois fornos de fumo –, Gabriel mantém um espaço onde planta no sistema agroflorestal, que consiste em uma junção de sistemas agrícolas e florestais. São diferentes culturas, inseridas em um espaço com muitas árvores. Os predominantes no espaço são os citros (bergamotas e laranjas), mas também existe plantação de palmito e pinhão e bananeiras, dentre outras plantas.
No total, Gabriela e Carlos Miguel mantêm três áreas de agrofloresta, onde no passado havia a plantação de fumo, milho e soja e criação de gado. Em sua propriedade, eles também montaram um viveiro artesanal para produção de mudas do Bioma Pampa, com ênfase nos butiazeiros. O casal calcula que 60% do sustento, atualmente, venha da agricultura.
“Ainda é difícil se integrar 100% para quem chega de fora, com uma bagagem diferente. Isso não quer dizer que não se tenha relações”, relata Carlos. Gabriela se diz satisfeita com a mudança para o interior, algo que lhe rendeu estar próxima de atividades relacionadas com sua profissão de engenheira florestal. “Pensando no círculo de pessoas que eu convivia antes, no meio universitário, era um pouco tóxico. Hoje em dia as pessoas com quem eu trabalho me interessam muito mais do que o meio acadêmico”, avalia.
LEIA TAMBÉM: Governo quer retomar urgência em projeto que flexibiliza liberação de agrotóxicos
Na localidade de São Martinho, Perci Darcisio Frantz produz bananas e frutas cítricas há mais de uma década. Aos 48 anos, faz parte do grupo de pessoas que, após passar a infância no interior, deixou o meio rural para tentar a sorte na cidade, mas acabou retornando.
Perci já saiu e voltou para a zona rural algumas vezes em sua vida. Quando mais jovem, ele deixou a casa dos seus pais para servir o Exército, acabou retornando para casa e até já foi morar na Bahia, voltando para a região no ano de 2006. Mas viver e produzir no campo é seu “destino de vida”, como ele mesmo conta. Antes, em 1994, o agricultor tentou produzir alimentos orgânicos, mas não deu certo.
Quando retornou do Nordeste para voltar a viver no meio rural, modificou sua produção para investir em uma cultura mais rentável, trocando o plantio de pepinos e chuchus pelas bananeiras e laranjeiras, de onde atualmente sai o seu sustento.
No ano de 2008, o agricultor ajudou a fundar a Cooperativa Regional de Alimentos Santa Cruz (Coopersanta). Foi a época em que ele percebeu a possibilidade de plantar bananas e gerar um lucro maior do que conseguia com outras culturas. Hoje, Perci administra os 5,5 hectares de terra em conjunto com seus pais, colhendo frutas orgânicas que são vendidas nos supermercados e restaurantes de Santa Cruz do Sul.
LEIA TAMBÉM: Preço do pinhão cai quase pela metade no Estado
Como dica para os que tiverem interesse em um dia deixar a vida urbana para viver de seu sustento no campo, Perci afirma que, além de paciência com o cultivo, é preciso saber adaptar-se à região onde se está produzindo.
Um dos “segredos” da produtividade das bananas de sua propriedade foi a adoção de práticas de manejo. Uma delas, inclusive, chama a atenção de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) – a introdução do piolho de cobra, inseto parecido com uma centopeia que trabalha no solo e produz material orgânico que serve como adubo, mantendo também a umidade do local.
Sua produção de bananas e laranjas garante colheita o ano inteiro, e Perci se diz totalmente satsfeito com a decisão de se fixar no meio rural, de onde pretende não mais sair. “Sempre quis produzir alimentos, mas queria produzir do meu jeito, sem agrotóxicos. O grande problema é, sem dúvida, a renda, poder vender sua produção.” A produção totalmente orgânica deu certo e Perci planeja ampliar seu espaço e erguer uma construção, onde será possível realizar seminários e receber alunos do meio rural.
LEIA TAMBÉM: Escola de Alto Paredão se destaca no programa Bolsa de Sementes
This website uses cookies.