Seguir a cultura do futebol exige uma constante irresignação com o que o árbitro decide em campo. Sempre que ele apita contra meu time, é preciso dizer que está errado. Já quando faz isso a favor, não só está correto – faz a mais absoluta justiça. Vez por outra somos confrontados com essa aparente contradição e, para contra-atacar, reivindicamos a necessidade de critérios claros para as decisões arbitrais em campo. Assim, saberíamos como elas são tomadas e, por consequência, seria mais fácil aceitá-las.
Quem acompanha o futebol, o esporte mais popular do País, vê isso em todos os jogos. Falamos sobre “critérios” para esconder que estamos apenas defendendo nosso próprio interesse, mas também porque queremos combater algo imprescindível nos gramados e na vida: a capacidade de interpretar. No lugar de pensar sobre o que acontece, pedimos parâmetros fixos para determinadas situações, como quando os jogadores colocam a mão na bola dentro da área. A responsabilidade sai um pouco de nós e recai sobre um certo automatismo, uma forma padronizada de agir.
A interpretação é uma atividade humana nobre. Exige que se pare, foque e reflita para extrair da situação o seu mais fiel significado. Falando só em termos de raciocínio, o que pode ser mais definidor do que somos? Principalmente em um mundo tão tecnológico, que muitas vezes toma decisões por nós? Corretamente, automatizamos os procedimentos repetitivos. Mas a ideia não era nos proporcionar tempo para a dedicação a tarefas mais a nossa altura, para as quais as máquinas não servem? Agora somos contra as interpretações – e seu risco de estarem erradas – , para pôr no lugar a automatização na forma de “critérios”.
Quando isso aparece no âmbito do futebol, soa como menos importante, por ser uma atividade esportiva e que se tornou quase entretenimento. Mas como, para várias outras situações, esse esporte serve como simulação do que ocorre na sociedade, deveríamos observar com mais atenção o que se passa lá. Não é muito diferente de outros ambientes, como a política, em que critérios fixos colocam quem debate em polos opostos. Fica impossível entender o “outro lado” porque, como diz o ditado, se você só tem um martelo como ferramenta, tudo são pregos.
Juntamos nossa desconfiança em relação às intenções das pessoas, que podem estar trapaceando, com a pouca reflexão sobre para onde a tecnologia está nos levando. Não é o caso de ser contra o avanço dos sistemas informatizados para muitas das áreas da vida – uma realidade incontornável –, mas apenas cuidar de manter alguns locais onde o ser humano possa ser o protagonista, usando algo de singular que possui.
Se não gostamos das interpretações, significa que não sabemos interpretar? E se não sabemos, como serão nossas ações? Agir é a forma como nosso pensamento se comunica com o mundo. Que coisas ruins podemos causar aos outros se, ao nos depararmos com alguma situação, formos incapazes de dizer do que se trata?
Por tudo isso, não devemos ignorar o risco de passarmos do estágio de “dependentes”, em termos de automatização, para o de “governados”. Um caminho para isso é varrermos do cenário a característica humana da interpretação. O cérebro humano é a única máquina que, sabidamente, serve para tudo.
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