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Imigração alemã: de Santa Cruz a Santa Catarina em carroça e a pé

A colonização do Sul do Brasil é marcada por odisseias. Não foi sem aventura que europeus (alemães, italianos, poloneses, tantas etnias) deixaram para trás sua terra natal e se determinaram a tentar vida nova na América. Mas também não foi sem coragem similar que descendentes, décadas após, empreenderam viagens para novas áreas nos mais diferentes rincões.

Entre essas migrações, a da família Sehn, que deixou Paredão, no interior de Santa Cruz do Sul, rumo a Santa Catarina, é o exemplo perfeito de quanto a decisão exigia arrojo. Em 1942, quando muitos se viam inclinados a tentar a sorte em “novas colônias”, o casal Philippe Sehn e Maria Dick colocou seus pertences em uma carroça e seguiu rumo a Santa Catarina. Parte da família viajou sobre a carroça, e parte seguiu atrás. A pé.

Junto com eles foram os sete filhos, entre os quais o pequeno Gosvino. Que,neste sábado completa 87 anos, ao lado da esposa Irica, que faz 85 neste domingo, na Linha Pitangueira, interior de Tunápolis, próximo a Itapiranga.

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Do paredão para a margem do Rio Uruguai

Gosvino completa 87 anos neste sábado, e a esposa Irica completa 85 neste domingo

Em 1926, há quase um século, um projeto de colonização resultou na Colônia Porto Novo, no Oeste de Santa Catarina, à margem do Rio Uruguai. Foi liderado pela Central das Caixas Rurais do Rio Grande do Sul, mas com atuação primordial da então Caixa Rural de Santa Cruz, a hoje Cooperativa Sicredi Vale do Rio Pardo, e promoveu a ocupação de territórios que compreendem os atuais municípios de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis.

Uma vez que havia empenho regional em fomentar esse projeto em solo catarinense, não foram poucas as famílias que se sentiram instadas a responder ao chamado de ir se instalar nas “novas colônias”. Uma delas foi a de Philippe Sehn Segundo (também grafado Felipe) e de Maria Dick, que estavam estabelecidos em pequena área de terras, de acentuado morro, em Paredão. Em 1942, tomaram a decisão de se desfazer de sua propriedade e, ao lado dos sete filhos que já possuíam, partiram rumo ao Estado vizinho.

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E o fizeram da forma como era possível, ainda que um tanto precária. Colocaram alguns poucos pertences em uma carroça e pegaram a estrada; parte da família sobre o meio de condução, que era puxado não por uma junta de dois, mas por três bois. Outros dois jovens solteiros acompanharam a comitiva, um deles de sobrenome Riplinger e outro Staub, e estes iam em uma charrete puxada por mulas, na qual alguns dos Sehn também pegaram carona. Mas Philippe e os filhos mais velhos fizeram o percurso… a pé. E os cachorros da família fizeram o mesmo périplo.

Quem recorda da aventura é um dos filhos do casal, Gosvino, então com 5 anos. E ele tem uma memória muito pontual de algumas das façanhas, da altura dos 87 anos, que completa neste domingo. Além dos sete filhos, outros três nasceram quando a família já estava instalada em Porto Novo. Foram nada menos do que 23 dias de viagem, com o pernoite ocorrendo em acampamentos ao ar livre. A janta era quase sempre a mesma: Wafel.

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A história dos Sehn foi registrada pelo pesquisador Aldino Dick, no livro Um sonho transformado em realização: três ramos da família Dick no Brasil. E igualmente mereceu reportagem ampla no jornal Expressão, de Itapiranga, publicada em novembro de 2013. Na carroça iam os mantimentos para a longa jornada (linguiça, arroz, feijão, farinha), bem como roupa de cama, panelas e outros itens. A maior parte dos bens havia sido despachada de trem, com destino a Ijuí, mas simplesmente desapareceu, para desapontamento da família.

O começo na nova terra não foi exatamente com facilidade. Um irmão de Philippe, Hermann, já morava na Linha Beatro Roque e reservara área para o mano. Por um ano, Maria e os filhos menores ficaram na Linha Dourado, enquanto o marido e os filhos maiores desbravavam a sua área. Quando Gosvino estava com 15 anos, o pai vendeu essa terra em Beato Roque, e se mudaram para Linha Fátima.

Ali Gosvino morou até 1967, quando se transferiu para Linha Pitangueira, então Itapiranga, hoje pertencente a Tunápolis. Antes disso, em 1960, casara com Irica Thomas, nascida em Itapiranga, mas de ascendência também gaúcha, e que neste domingo completa 85 anos. Já do casal pioneiro, Philippe faleceu em 1979, aos 74 anos, e Maria faleceu em 1994, aos 90 anos.

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RECOMEÇO COM PLENO ÊXITO

O recomeço da família Sehn no Oeste catarinense exigiu trabalho árduo, mas as terras efetivamente eram planas, bem ao contrário dos morros difíceis de cultivar da região de Paredão. Por lá, tanto o casal Philippe e Maria quanto os filhos puderam se estabelecer. A primeira cultura na qual apostaram foi o tabaco, primeiro o Comum e depois o Burley. Mas, com o tempo, na diversificação típica da pequena propriedade, estabeleceu-se a criação de aves e de suínos e a produção de leite, hoje grandes bases da economia em toda a região.

O casal Sehn com os nove filhos, que hoje residem em diferentes regiões no País

A foto acima mostra a família de Gosvino, que estava com 5 anos quando empreenderam a odisseia rumo a Santa Catarina, e de sua esposa Irica. Os filhos, sete meninos e duas meninas, nominados da esquerda para a direita, são: Jonilton (o mais novo), Irton, Loivo, Alcindo, Leonice, Astor, Valdino, Valdécio e Lisete. Muitos deles seguem na agricultura em sua região, enquanto outros atuam em funções na cidade, e outros ainda se transferiram para Mato Grosso.

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Uma visita para rever o ambiente de origem familiar

Seu Gosvino e dona Irica com o filho Valdécio em uma visita a Paredão, terra natal dele, em 2000

Os sete filhos que Philippe Sehn Segundo e Maria Dick já possuíam quando ainda moravam no Paredão, no interior de Santa Cruz do Sul, área que hoje se distribui nos limites com Sinimbu, após a emancipação desse município, foram todos registrados em Monte Alverne. São, pela ordem: Beno, Hugo, Thekla, Paulo José, Felipe Marcos, Gosvino e Cláudio. Quando já haviam se instalado em Porto Novo, na Linha Beato Roque, nasceram ainda três filhas: Maria, logo no ano seguinte à chegada, em 1943; Lúcia, em 1945; e Rosa, em 1948.

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Depois de terem se instalado no Oeste catarinense, os Sehn foram gradativamente perdendo o contato regular com a terra de origem, em Santa Cruz. No entanto, Gosvino e a esposa Irica fizeram, sim, viagens para rever a região de Paredão, de onde ele saíra com apenas cinco anos. Na última dessas visitas, no início deste século, vieram acompanhados do filho Valdécio e conferiram os promontórios que dão nome à localidade, situada no extremo norte de Santa Cruz. Por lá, constataram que, de fato, as lavouras em terreno muito íngreme realmente dificultavam o cultivo e exigiam enorme esforço.

Foi por essa razão que, na expectativa de criar e sustentar com mais facilidade os sete filhos que já tinham, Philippe e Maria tomaram a decisão de partir para a nova colônia, no Oeste catarinense. A exemplo deles, muitas famílias de diferentes regiões gaúchas, em especial as que eram alemãs ou italianas, e que tinham muitos filhos, foram em busca de novas oportunidades em vários empreendimentos coloniais.

A vida era muito difícil

Área de lavouras ao fundo da foto fazia parte da terra, muito inclinada, que pertencia aos Sehn

Ainda na primeira metade do século 20, quando os Sehn deixaram Paredão rumo a Porto Novo, as tecnologias e perspectivas de exploração de pequenas propriedades nessa região eram muito mais limitadas do que hoje. Novos recursos, novos cultivos e também as alternativas de diversificação já permitem um aquecimento da economia. No entanto, os contrastes deviam ser fortes entre os morros e as falésias de Paredão e as terras planas do Oeste catarinense. Ainda que, nessa nova fronteira, o primeiro grande desafio tenha sido derrubar a mata virgem para viabilizar o cultivo. Gosvino lembra de, nos seguintes à chegada ao novo lar, ajudar o pai e os irmãos a derrubarem árvores e serrarem a madeira, tudo de forma manual.

A criação de aves e suínos predomina nessa região

Propriedade dos Sehn, em Linha Pitangueira, dispõe de um moderno pavilhão para suinocultura

Se o cooperativismo está na base e na origem do próprio projeto de colonização de Porto Novo, não deve ser surpresa que continue muito ativo e atuante nos municípios que resultaram dessa iniciativa pioneira. Aliás, Gosvino Sehn recorda que a influência de padres jesuítas, como o padre Max von Lassberg e muito especialmente o padre Theodor Amstad, este o precursor das ideias cooperativistas no Sul do Brasil, era muito forte em toda aquela região colonial.

Dessa maneira, ainda hoje a atuação de cooperativas é relevante na socioeconomia de Itapiranga, São João do Oeste e Tunápolis, bem como em todo o Oeste catarinense. Um dos filhos de seu Gosvino e dona Irica, Valdécio, de 61 anos, atua há 42 anos na área financeira e administrativa da atual Cooper A1. E ele menciona que em toda a região a integração para a produção de frangos e de leite, bem como para a produção de grãos, é a grande base econômica. Em função disso, e eventualmente ainda da suinocultura ou de hortigranjeiros, o tabaco praticamente deixou de ser cultivado nessas áreas.

A propriedade dos Sehn, em Linha Pitangueira, hoje se localiza a cerca de nove quilômetros de Tunápolis, a cujo território agora pertence, depois que esta se emancipou de Itapiranga.

Testemunhas de uma época que exigiu muita resiliência e superação

Descanso: Gosvino e Irica hoje curtem a aposentadoria

O segundo filho de Gosvino e Irica, Valdécio, de 61 anos (completa 62 no dia 15 de março), foi o que acompanhou os pais na mais recente viagem que estes fizeram à região de origem da família em Paredão. Valdécio foi quem também mediou o contato da Gazeta do Sul com os pais, dispondo-se a se deslocar de Itapiranga, onde reside e trabalha, até Linha Pitangueira, num percurso de 25 quilômetros, para que a reportagem pudesse falar com o casal em ligação de vídeo por WhatsApp. Foi uma conversa na qual seu Osvino citou algumas lembranças da longa viagem que fizeram quando ele tinha apenas 5 anos, entre Santa Cruz e Santa Catarina.

Valdécio, de 61 anos, atua há 42 anos na Cooper A1

Bacharel em Ciências Contábeis, Valdécio é casado com Cecília Grings, natural de Itapiranga. Eles têm o casal de filhos Daniele, 38 anos, economista e que atua na área de logística, e Diego, 37, consultor no agronegócio. A partir do que ouvia de seu pai, Valdécio entende que a migração para Santa Catarina, na década de 1940, foi uma necessidade que se impôs aos avós e à família.

“As limitações oferecidas por aquele terreno, e eles ainda com família numerosa, os levaram a buscar terras mais férteis e que, abertas, fossem melhores de trabalhar”, avalia. Valdécio recorda de ter convivido muito com o avô Philippe, e inclusive de ter auxiliado nos trabalhos pesados quando jovem. Enquanto a família residia na Linha Fátima, ele seguidamente viajava com o avô, de carroça, até a vizinha Iporã do Oeste.

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Romar Behling

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