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TEORIA LITERÁRIA

Ideias que desvelam o real

Foto: Albus Produtora

Flávio Kothe amplia a reflexão em torno da alegoria e a expande para a aura e o fetiche

O ensaio A alegoria, de Flávio Kothe, surgiu na série Princípios, da Ática, em 1986, um ano depois de O herói. Se com este se ocupara do personagem que costuma ser dominante no texto literário, com aquele se voltava à que é entendida como a figura de linguagem, no âmbito da retórica, que seria a representação concreta de uma ideia abstrata. “Isso é ditado pela metafísica, de que haveria ideias como puras formas, apartadas do mundo real das coisas concretas”, citou o autor.

Na nova edição, agora efetivada pela Cajuína, a reflexão de Kothe é expandida de maneira significativa, a ponto de o próprio título ter sido alterado, para contemplar dois outros conceitos que agora investiga, a aura e o fetiche. Assim, Alegoria, aura e fetiche é bastante mais encorpado em relação ao volume de cerca de 100 páginas, formato pocket, de 1986. A nova edição praticamente dobra de tamanho, o que proporciona ao leitor uma nova (e efetivamente original) contribuição do autor aos estudos literários e culturais.

Se a alegoria fora o assunto central na primeira edição, na qual revisa a bibliografia existente em torno da figura de linguagem (como tal, carregada de intencionalidade, de maneira que a missão e o desafio para o leitor são identificar e apreender o subjacente), agora a aura e o fetiche requereram esse mesmo esforço.

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No caso de “aura”, como cita, reporta-se ao escritor e pensador alemão Walter Benjamin, para quem ela era a “aparição única de algo distante”. Ao redefinir, como sugere Kothe, o conceito de belo (a aura que sugere a beleza), “aponta para a transcendência do ente estético, a sua capacidade de aflorar um ser que é maior que o mero ente singular que se apresenta”.

E em “fetiche”, vale-se de Karl Marx quando este conceitua “o caráter do fetiche da mercadoria como sobreposição do valor de troca ao valor do uso do bem, ou seja, à sua capacidade de atender a uma necessidade”. Kothe frisa que a propaganda tem tratado de fetichizar mercadorias, “para que elas pareçam atender a necessidades que podem nem estar no escopo fundamental, mas que são inventadas, cultuadas, para serem entendidas. A ficção passa a dominar o real”, diz Kothe.

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Nos três conceitos, a reflexão do ensaísta parte da obra literária, mas nunca deixa de ter em mente também o espaço social, atual, real, em que vivemos.

No capitalismo, não basta produzir bens para atender às necessidades. Inventam-se carências. O produto precisa ser comercializado. Ele fica gritando em busca de consumidores. Seu grito é a publicidade. Há bens que atendem a necessidades, mas não entram no mercado, não são comercializados: o que se produz para consumo próprio no quintal de casa é um exemplo disso. A maior parte dos livros não entra em processo de divulgação e badalação. O autor precisa financiar a edição e, assim, ele paga para ser lido. Não está aqui em discussão a qualidade do texto. Uma boa obra pode não ser conhecida nem reconhecida, enquanto se badalam obras de menor qualidade.

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Magazine – O que o ensaio O herói representa no conjunto da obra do senhor e o que proporciona essa nova edição? Houve atualização de conteúdo?

O que temos agora é uma ampliação de um livro didático publicado em 1985 pela Ática, na coleção Princípios, e que vendeu muito, ao ser adotado em faculdades e reeditado em 1987. Estava esgotado há muitos anos. A editora Cajuína propôs reeditar a obra; eu contrapropus reescrever e aprofundar o texto, indo além dos parâmetros didáticos da coleção anterior.

Nas décadas de 1970-80, havia no Brasil uma tensão entre a escola sociológica de São Paulo e a análise imanente proposta no Rio de Janeiro. Procurei mostrar como estruturas sociais se tornavam estruturas narrativas, em sistemas sígnicos diversos, sendo o herói o nódulo estruturante, a dominante no sistema, em diversos gêneros, como a epopeia, o romance, a tragédia, a narrativa trivial, não só como literatura. Eu havia examinado essas noções no livro Literatura e sistemas intersemióticos, publicado pela Cortez à base da tese de livre-docência e que parece ter me custado o emprego na PUCSP, pois não agradou aos peirceanos. Esse livro estava esgotado, e eu também o reescrevi, para uma nova edição na Cajuína.

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Em O herói retomei, por exemplo, o estudo da história bíblica de José e seus irmãos, mostrando como ela prende a atenção e sugere que Jeová comanda a história. Os heróis das narrativas triviais são contrastados por personagens trágicos e épicos, permitindo discernir também trivialidade no grandioso e, ao mesmo tempo, ver como os espectadores são manipulados pelo gesto semântico subjacente ao trivial. Desenvolvi isso no meu livro A narrativa trivial, que teve sua segunda edição na Editora da Universidade de Brasília.

Já A alegoria também acaba de ser relançado. O senhor entende que essa obra segue plenamente atual, em termos de estudos literários e culturais?

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Ela é atual, até antecipa percursos ainda não construídos. A alegoria era definida pela retórica como representação concreta de uma ideia abstrata. De onde provém, no entanto, essa contraposição entre concreto e abstrato, qual é a concepção de verdade aí subjacente? O que é representação? O horizonte médio repete Aquino, de que a mente divina seria O Ser, no qual estaria presente a essência de todos os entes. A escolástica se desviou aí de Aristóteles, que dizia que não há um ente que possa ser todos os entes. Cada ente é o que é por não ser o que outro é. Um não pode ser o ser de outro. Não é lógico que um ente possa ser todos os entes e tenha sua identidade por conter a identidade de todos.

Na alegoria se tem, no entanto, o aceno de que nisso que nos aparece há algo mais, diferente, do que sua fachada encena. Como algo pode ser outro? Como algo diferente vibra no interior de um ente? Como podemos discernir esse outro? Ou seja, como fazer a leitura alegórica da alegoria? Na sobreposição do valor de troca sobre o valor de uso, quem compra a mercadoria acredita que recebe mais do que paga, a publicidade procura construir fetiches, auratizando artigos e pessoas. Não podemos ignorar o que Marx, Freud, Benjamin, Adorno, Jameson e outros escreveram sobre esses temas, mas temos de avançar. Não pensa quem não pensa adiante.

Que as metrópoles coloniais não respeitem o pensamento que surja no que querem que sejam seus quintais, isso é arrogância delas, mas ela já vai sendo superada pela história. As antigas potências coloniais europeias tornaram-se, desde 1945, colônias de uma ex-colônia britânica e, atualmente, estão sendo superadas pelo mundo multipolar. Enquanto eu era perseguido no Brasil pela ditadura militar, tive apoio de entidades externas, como DAAD, Fulbright, Universidade de Rostock, que me permitiram conhecer grandes nomes da teoria literária e estudar. Gratidão é produzir algo digno dos mestres, sem ter a postura do colonizado, que acha que só está refletindo enquanto refletir as luzes das metrópoles. A crise da duplicação metafísica do mundo precisa ser repensada em novos termos.

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