Existem episódios na vida de cada um que são únicos. Se não registrados, perdem-se na ventania do tempo e jamais serão recuperados. Alguns são tão marcantes, que teimam em desabitar a memória, persistem pela singeleza, graça, criativas imagens e construções. Relembro algumas do meu tempo de internato no seminário diocesano de Caxias do Sul e alguma da minha vida profissional.
Padre Pedro Rizzo era gordo, simpático, hilariante, professor de História e contador de causos. Um dia contou que um homem cavalgava solitário em longo trecho dos Campos de Cima da Serra. Eis que percebeu que no alforje havia um grilo que não parava de estridular, de cantar aquela melodia monótona. Parou várias vezes, irritado, tentando esmagar o bicho, mas não o localizava. Andava e lá vinha o chirriar do inseto. Por fim, deu-se por vencido e começou a apreciar a sonora companhia.
Chegando ao destino, desencilhou o cavalo e foi para casa. Sentindo falta da cantoria, voltou ao galpão para reencontrar o companheiro. Não mais o localizando, encheu-se de tristeza e culpa. Perdera um grande amigo. Nunca mais me esqueci dessa história que sempre associo às pequenas coisas que nos incomodam, mas que acabam se impregnando em nós, como pequenos valores, para sempre.
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Um dia, ele estava passando uma lição sobre a Colômbia e os povos originários de lá, entre os quais os índios chibchas. Um colega nosso – depois médico em Vacaria – leu chibichas, inserindo esse i de apoio para facilitar a pronúncia (mesma ocorrência em subistantivo, adevogado). Padre Pedro repetia chibichas, chibichas e ria adoidado, sacudindo a proeminente barriga, rindo, rindo… ora, chibichas!
Nosso professor de italiano era um padre baixinho, magro, bem elétrico. Não lembro o nome dele. Nunca mais esqueci, porém, que com ele aprendi que lo zero é rondo (o zero é redondo) e mai fare nasale (nunca pronuncie nasais), porque palavras italianas não possuem nasais. Apesar de apenas um ano de aula, aprendi muito e gosto da língua até hoje. Ela é sonora, doce, musical.
José Clemente Pozenato, então padre, era nosso professor de literatura e também ensaiava teatro. Ele nos fez ensaiar e encenar uma peça se não me engano de Samuel Beckett, complicada, difícil. O texto nos foi entregue datilografado e mimeografado. No primeiro ensaio, entrei em cena falando “o que esse alouçado pensa?”. Na folha, em vez de aloucado estava esse cê-cedilha traiçoeira que levou o pessoal ao delírio. Apresentamos a peça em Antônio Prado. Havia assassinato a tiros. Uma italiana da cepa, lá pelas tantas, não entendendo nada, disparou na plateia: dano due o tre tire e cá chiapa cinque fiorine, mais ou menos isso. Dão dois ou três tiros e lá se vão meus cinco reais.
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Todos os trabalhos que eu pedia aos meus alunos eram lidos com atenção, com as correções necessárias e as sugestões para as possíveis ou necessárias melhorias. Ao devolvê-los, comentava diversas questões, procurando auxiliar na aprendizagem. Nunca citava de quem era o texto. Certo dia, encontrei uma resenha quase perfeita. Fui procurar na internet e lá estava ela. Considerando que estava acima da então capacidade da aluna, comentei: “Acho que este vestido é grande demais para esta prenda!”. Até já tinha esquecido o caso, mas a aluna, até hoje minha grande amiga, não cansa de recordar a cena. De castigo, não dei zero (redondo), mas pedi que refizesse e entregasse na próxima aula.
Cenas pequenas também guardam grandeza.
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