“No meu tempo de garoto, vivíamos pelos campos da vida. De manhã, no intervalo das aulas, íamos para o pátio do colégio em busca de alguma coisa que lembrasse bola. Dezenas de caroços de abacate se rompiam diariamente por culpa de nossos chutes. À tarde, corríamos atrás de alguma área livre para continuarmos a brincadeira e, de vez em quando, arrumávamos um time contra quem jogar.” O relato do ex-jogador Sócrates ao jornal Agora, em 2002, sobre seus primeiros passos no futebol, revela um cenário que parece estar em extinção nos dias atuais. Jogar de pés descalços, com uma bola improvisada, é hoje uma prática distante. Em um momento em que campos abertos são cada vez mais ocupados por novos empreendimentos e as opções de entretenimento estão muito mais no mundo virtual do que no presencial, é difícil imaginar que existiu uma quadra de areião no coração da Rua Marechal Floriano, no Centro de Santa Cruz do Sul, que foi palco de divertimento para gerações de santa-cruzenses ao longo de décadas.
No Colégio Marista São Luís, a memória afetiva segue fresca para dezenas de ex-alunos e docentes que viveram um período no qual o pátio do local contava com um campo de futebol sete, apelidado carinhosamente de “Abacateiro”, por contar com uma árvore dessa espécie do lado esquerdo de uma goleira. Se os caroços de abacate fizeram parte da infância de Sócrates no interior de São Paulo, no campo do São Luís o abacateiro que deu nome ao local fazia parte dos jogos, sendo utilizado como tabela pelos jogadores, além de prover o alimento em épocas de frutos. Mais do que isso, a árvore segue viva na memória de muitas pessoas e se tornou lenda, vindo a ruir junto com seu criador.
Os sábados de peleia
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Se para as gerações atuais ir ao colégio nos fins de semana para se divertir, jogar um futebol ou mesmo aproveitar a pracinha é algo fora da realidade, entre os anos de 1950 e 1980 era comum. Requisitado, o Abacateiro era utilizado durante a semana para as aulas de Educação Física, os ensaios da banda marcial e outras atividades curriculares. Aos sábados, no entanto, o local era palco de peleias acirradas entre amigos, que, desde as primeiras horas de segunda-feira, já começavam a marcar os horários das partidas.
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“Os jogos começavam cedo da tarde nos sábados; entretanto, o horário das 16h30 era exclusivo para a partida que envolvia equipes formadas por irmãos maristas e professores”, conta Luiz Henrique Kuhn, o Ike, apresentador do programa Revista da Noite, da Rádio Gazeta FM 107,9. Ele estudou no São Luís entre o fim da década de 1960 e o início de 1970. “Os jogos aconteciam com a presença do abacateiro. E muitas brincadeiras surgiram com esta situação. Lembro dos jogos interséries, que eram muito disputados.”
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No campo, vários jogadores se destacaram. “Certamente, o mais famoso foi Rogério Karls, o ‘Cabeça’, maior goleador do Abacateiro, e que depois foi profissional no Avenida e no Santa Cruz. Seus irmãos, Waldir, Preta e Beto, também jogavam com frequência no areião”, comenta Ike. Segundo ele, o goleiro Cacildo Pagel, que também foi profissional, começou sua carreira neste campo de futebol sete, assim como outros jogadores destacados no cenário regional, como o zagueiro Francisco Freitas, o Chicão; Ademir Furtado, que jogou no Caxias, e Astor Eidt e Manuel Oliveira, também zagueiros que defenderam o Santa Cruz.
A bola que veio do céu
Elenor Schneider começou sua trajetória como professor do Colégio Marista São Luís ainda em 1970 e integrou a equipe formada por docentes e irmãos maristas. “Os grandes eventos no Abacateiro aconteciam mesmo aos sábados. Nosso jogo, entre professores, era sempre o último do dia. Foram partidas memoráveis”, relembra Elenor.
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Entre essas histórias ímpares presenciadas está o chamado “jogo do avião”, ocorrido em 1973 e relembrado pelo ex-aluno e ex-professor Elemar Ghisleni, o Gringo. “Lembro que em um sábado de partida decisiva, entre professores e alunos, a bola do jogo foi lançada ao campo por um avião do aeroclube. Acontece que o professor Hélio Antônio Seidel era o presidente do aeroclube e muitos alunos faziam o curso de pilotagem. Com isso, foi possível fazer essa epopeia.”
Elenor também lembra do episódio. “Quem pegasse a bola vinda do céu a ganharia de presente. Curiosamente, quem a pegou foi o diretor Irmão Evaldo, e a bola ficou para o colégio”, conta Elenor. Na época em que o abacateiro da quadra dava frutos, em muitos momentos os chutes eram direcionados à árvore e não à goleira. “Chutavam de propósito para caírem os abacates e levarem embora.”
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Outro fato curioso se refere à vizinhança. “A cerca não era muito alta e a bola, vez ou outra, caía no pátio do vizinho, que era meio brabo e normalmente ficava resmungando. Quando ia na casa dele, era uma dificuldade reaver a bola. Alguns se arriscavam e pulavam a cerca. Mas também não devia ser fácil a cada dez minutos uma bola cair na tua casa”, admite Elenor.
“Os guris tinham a manha de usar a parede para fazer tabelinha, pois ali não tinha lateral”, refere Ben Hur Silva, estudante do Colégio Marista São Luís entre os anos de 1960 e 1963, quando se formou no Ginásio. O ex-aluno saiu de Santa Cruz em 1971 e rodou o Brasil, morando no Rio de Janeiro e em São Paulo e fixando residência em Porto Alegre, mas diz nunca se esquecer da “terrinha”.
“O abacateiro parecia se sentir útil quando algum menino pendurava sua pasta em um dos seus galhos para jogar bolita, embaixo da sua frondosa sombra. Tinha vida, sim, aquela linda e vigorosa árvore, embora parecesse, às vezes, que não gostava de ser chamada assim, pois seu nome de verdade era Abacateiro.” Ele retrata a árvore como se ela, na época, tivesse sentimentos.
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“Imagino ele de um jeito amigo, carinhoso, algo que tinha identidade com a gurizada. Aquele pedaço de terra tinha uma energia que só quem pisou sabe. Por sua imponência, parece que aguardava os dias de jogos, sentia falta do tumulto dos recreios, se dobrava para ver os últimos alunos indo para casa.”
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O Torneio dos Médios de 1966 e o irmão costurador de redes
Estudante do Colégio Marista São Luís entre 1965 e 1969, Paulo Trinks viveu grandes momentos no Abacateiro. Um deles é especial: o título do Torneio dos Médios, realizado em maio de 1966. “Eu estava no Ginásio e a competição reunia os alunos das turmas de 3º e 4º anos, além dos estudantes do grupo científico. Todos os jogadores dessas turmas eram reunidos e os times sorteados, diferente dos torneios entre as séries”, explica Trinks.
A equipe que conquistou a taça era formada por Ike no gol, o zagueiro Paulo Trinks, Adalberto Rech, Valmor Sizinando, Nestor Nascimento, Sérgio Rauber e Renê Wilges. “Lembro bem de outros grandes jogadores que atuaram no Abacateiro, como os irmãos Valdir Xaxá e Rosemiro, que mais tarde atuaram pelo Flamengo do Arroio Grande”, salienta o ex-estudante do São Luís.
Aluno na década de 1950, Roque José Frantz, o popular Foguinho, também relembra o período em que o primo Irmão Willibaldo era o supervisor dos estudantes. “Foram diversas partidas entre alunos internos e externos no famoso Abacateiro. Fui contemporâneo também do Carlos Muradás, o Carlitos, que jogou comigo no São Luís, depois foi para o Santa Cruz e, na sequência, para o Internacional”, complementa Foguinho.
“Era um local bem especial, em que nos divertimos muito. O abacateiro que ficava no campo cobria boa parte da cancha de areia. Quando dava abacate, eles não duravam muito”, frisa Trinks, se referindo aos jogadores que saciavam a fome com as frutas. Ele ainda menciona um momento tenso, ainda que curioso, ocorrido em um dos jogos no Abacateiro.
“Naquele mesmo ano de 1966, lembro que nosso colega, o Preta, deu uma chegada forte no Irmão Ari, que foi parar dentro de uma lixeira, na época feita com a metade de um tonel. O Irmão Ari ficou um ‘tigre’ de brabo e o resto do ano não foi fácil para o Preta”, sorri Trinks.
Outro campeão no local foi Lair Ipê da Silva, o Laia. Ele iniciou os estudos no Colégio Marista São Luís aos 12 anos, em 1966. “Nas aulas de Educação Física, com o professor Bruno, a gente não via a hora de terminarem os exercícios de aquecimento para irmos jogar no Abacateiro. Era nossa ‘menina dos olhos’. Ficava mais para dentro do colégio, nas proximidades da antiga joalheria do seu Lolô Vianna”, relata Laia. “Jogávamos descalços e lembro que ficávamos esperando o jogo dos mestres, nossos professores Bruno Seidel, o Brunão; Elenor Schneider, Alcido Kist, Olavo Rochemback e Elemar Ghisleni, além dos irmãos Ari, Evaldo e Fidélis.”
O último citado por Laia era responsável também por uma importante tarefa. “Além de professor e de jogar com os alunos, o Irmão Fidélis confeccionava as redes para colocar nas goleiras do Abacateiro. Ele era o cara. Cuidava muito bem dessa questão.” Os jogos entre docentes contavam com a torcida dos alunos. “Em um desses jogos de professores e irmãos, organizamos uma charanga, com parte dos instrumentos da banda do colégio, cantorias e buzinas. Dava uma vibração especial. Era só alegria.”
Os chutes que, por coincidência ou não, acabavam direcionados à árvore também eram motivos de felicidade. “Quando um caía, levávamos o abacate para casa feliz da vida, para a mãe fazer uma batida”, recorda Lair Ipê da Silva.
A árvore cresceu ao longo das décadas e chegou na fase adulta entre os anos de 1960 e 1970. Pela altura, segundo seus contemporâneos, fazia a sombra ocupar toda a cancha.
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O fim da árvore e do seu humilde e zeloso criador
Consta que o abacateiro localizado no campo do São Luís nasceu em 1943. Ele foi plantado por um senhor de meia-idade, zeloso e cuidadoso, que era tido pelos irmãos maristas como “piedoso e grande devoto de Nossa Senhora e de São José”. Nascido em Porto Alegre, ainda no século 19, mais precisamente em 1899, seu Rodolfo Silveira adotou Santa Cruz do Sul como cidade e o Colégio Marista São Luís como sua segunda casa. Antes de fixar residência no município, trabalhou também como zelador em outros educandários, como o Colégio Marista São Jacó, de Novo Hamburgo, e o Colégio São José, de Porto Alegre.
O abacateiro, por sua vez, é uma árvore que deve ser irrigada de forma periódica para se desenvolver bem, o que, de fato, ocorria pelas mãos do cuidadoso Rodolfo. “Ele chamava a atenção por ser um senhor muito simples, que varria o pátio, cuidava das folhagens e tinha uma atenção toda especial para com o abacateiro”, relembra Lair Ipê da Silva. “Ele ainda protegia a gurizada de uma cadela enorme do Irmão Pedro, a Nega, uma pastor-alemão que assustava ao andar pelo campinho. Era o nosso anjo da guarda”, ressalta.
“Muitas vezes tentaram derrubar a árvore, mas seu Rodolfo não permitia, sendo respeitado tanto pelos alunos quanto pelos visitantes”, consta sobre o zelador no livro 110 anos do Colégio Marista São Luís, de 2013, escrito pelo jornalista e ex-professor universitário Sérgio Roberto Dillenburg. “Seu Rodolfo era muito dedicado, gostava de conversar com os alunos”, recorda Ike. Foguinho também relata a parceria com o funcionário. “Uma grande característica era a humildade. Todos gostavam dele. Lembro que tinha duas bicicletas. Emprestava uma para quem quisesse andar com ele e, algumas vezes, andava pelos pilares do educandário e pelo pátio. As histórias do seu Rodolfo e do abacateiro se confundem, de tão ligados que eram.”
De fato, tal qual o relato do ex-aluno, a vida dos dois chegou ao fim muito próximo e de forma repentina. Após 41 anos de ininterrupto trabalho no São Luís, Rodolfo Silveira morreu em 1975, aos 76 anos, após um mal súbito. Ele foi velado na Sala Champagnat do colégio e encomendado na Catedral São João Batista. Após a missa de corpo presente, uma grande multidão, entre estudantes, professores e ex-alunos, incluindo uma representação de irmãos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), acompanhou o cortejo até o Cemitério Católico.
Curiosamente, poucos meses após o falecimento de seu cuidador, o abacateiro também se entregou, já com 32 anos de existência, um ciclo de vida acima da média para essa espécie. Para Ben Hur Silva, a árvore “sentiu” a morte do seu criador. “O abacateiro também sofreu com a morte dele e entregou seus frutos para os anjos”, define.
Lampejos de um passado
A Gazeta do Sul convidou os ex-alunos Ike, Laia e Paulo Trinks, além do ex-professor Elenor Schneider, para fazer uma viagem no tempo em uma visita ao Colégio Marista São Luís. Meio século após ter vivido seus momentos no abacateiro, o quarteto contemporâneo relembrou causos do período e momentos que presenciaram juntos. Vez ou outra, entre brincadeiras, discordavam sobre a posição onde ficava uma ou outra sala do colégio, sobre onde era um determinado ponto do educandário, ou mesmo as circunstâncias de algum episódio.
“A bola jogada do avião caiu no abacateiro”; “Não, ela caiu no meio do campo”; “Ali fizeram uma quadra de cimento, para depois construírem o Luisão”; “Acho que não, ali era um outro areião”. O ponto de concordância, entretanto, era a alegria de estarem no local em que viveram boa parte da infância e da juventude. Próximo de onde foi fixada, na época, a “goleira de cima” do campo, que ficava a uns três metros do abacateiro, o quarteto bateu papo e, claro, não poderia deixar de jogar uma bolinha, em alguns lampejos dos jogadores que foram outrora, o que as fotos, trazidas por Laia ao encontro, podiam comprovar.
Não bastassem as coincidências do momento, tal qual o “jogo do avião”, um teco-teco sobrevoou o saudoso espaço em que ficava o abacateiro do Colégio Marista São Luís (confira o inusitado momento no vídeo abaixo), enquanto os antigos colegas relembravam uma época em que o divertimento tinha outro significado.
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