O dia está clareando quando Elane, 53 anos, deixa sua casa, no bairro de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro. O “expediente” normalmente começa às 5 horas. Para cumprir a meta de fazer pelo menos R$ 150,00 no dia, ela roda pelas ruas da capital carioca até o fim da tarde. Essa batida é feita de segunda à sexta-feira. “Se eu não trabalhar, não como”, disse de forma espontânea. Determinação e bom humor norteiam a personalidade dessa motorista de aplicativo que, há exatos 30 anos, foi autora do único gol da seleção brasileira na vitória de 1 a 0 sobre o Japão, na estreia na primeira Copa do Mundo de futebol feminino na China.
Um Prisma preto modelo 2016 é o seu sustento nessa rotina estressante. Para enfrentar o trânsito caótico do Rio, que tem uma população estimada em 6,7 milhões de habitantes segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ela se abastece com um lanche reforçado no meio do dia. “Na verdade, estou sem trabalho e é difícil emprego com carteira assinada. Como não completei meus estudos, a única coisa que sei fazer é dirigir. E vamos em frente.” O estilo brioso também tem espaço para o lado família. Em uma casa própria comprada graças aos anos de futebol, a ex-zagueira mora com a mãe Nilcea, de 81 anos.
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O exemplo de Elane é apenas mais um em meio àquele grupo de desbravadoras. Quem vê a estrutura do futebol feminino hoje não imagina as dificuldades que essas atletas enfrentaram para defender o Brasil na Copa do Mundo de 1991. Não havia espaço para o futebol das meninas. Falta de estrutura, preconceito e uma modalidade que trabalhava praticamente no amadorismo eram os obstáculos do longínquo ano de 1991.
Muitas tiveram que abdicar da família e de empregos mais rentáveis para apostar no sonho de ganhar a vida com a chuteira nos pés. Remuneração? Não existia. A realidade da época oferecia apenas uma ajuda de custo irrisória, ainda mais se comparada aos vencimentos oferecidos aos atletas do futebol masculino, que já ganhavam bem.
Prima de Taffarel
Prima em terceiro grau do ex-goleiro Taffarel, tetracampeão do mundo em 1994, Márcia Taffarel vivia uma realidade completamente oposta ao parente famoso. “Eu deixei o meu emprego na Fundação Bradesco pelo sonho de jogar uma Copa do Mundo. O que nós ganhávamos de diária não dava para nada. O meu salário no banco pagava o dobro, por exemplo. Optei por ficar na seleção por acreditar que, com a CBF envolvida, o futebol feminino pudesse ter mais investimento e estrutura, mas não foi o que se viu naquele momento”, disse a ex-meio-campista que hoje mora nos Estados Unidos.
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Na conversa com a reportagem do Estadão, Márcia relembrou os tempos difíceis que marcaram a preparação daquele grupo. “A base da seleção era o Radar, principal time da época, mas eu jogava no Saad de Campinas. A preparação durou uns dez meses porque não existia um calendário. Era uma ou duas competições. No restante do ano, as meninas jogavam futebol de salão para se manter em atividade. Ficávamos na Escola de Educação Física do Exército, dormíamos no alojamento, em beliches.”
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Além da falta de estrutura, um outro aspecto precisou ser trabalhado: o psicológico. A solidão e a incerteza quanto ao futuro do esporte eram adversários íntimos das meninas. “Quem tinha parente no Rio ou em São Paulo aproveitava as folgas para ver a família. Mas quem morava na Bahia, ou no Rio Grande do Sul, por exemplo, não tinha muita opção. Ou gastava todo o dinheiro das diárias com passagens aéreas, ou permanecia na Escola de Educação Física do Exército. Eu, muitas vezes, fiquei no Rio para ter um dinheirinho no bolso”, conta Márcia.
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Ela foi uma das poucas meninas daquela geração a seguir no futebol. Atualmente, é treinadora das categorias de base do Walnut Creek Surf Soccer Club, na Flórida, nos Estados Unidos. Além do trabalho de campo, ela vem fazendo cursos de gestão na CBF. “Quero trabalhar mais com gerenciamento. Estou abrindo essa perspectiva para mim.”
O improviso marcou a trajetória de uma outra personagem que esteve à serviço da seleção brasileira na Copa do Mundo da China. Solange, ou simplesmente Soró, era uma zagueira de boa técnica que se inspirava no ex-flamenguista Mozer. O apelido foi inspirado num personagem vivido pelo ator Arnaud Rodrigues na novela “Pão Pão, Beijo Beijo”, exibida pela Rede Globo em 1983. “Eu tinha o cabelo redondinho como o dele e o pessoal pegava no pé. No início, não gostei, mas aí que o apelido pegou. Mas o Arnaud foi um artista maravilhoso e depois eu aprovei”, disse Soró, que atualmente trabalha como técnica na categoria de base do Bahia.
Presente na seleção que participou do torneio experimental organizado pela Fifa, em 1988, ela praticamente tinha abandonado a carreira nos campos. Mesmo estando dois anos sem jogar, a ex-defensora foi chamada para dois amistosos na Bahia. O objetivo era recrutar meninas para integrar o time que disputaria o Mundial de 1991.
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Mesma comida dos soldados
Os duelos foram contra os juvenis de Bahia e Vitória. Apesar da falta de ritmo, a atleta passou no teste. “Saí de Salvador e fui para o Rio de Janeiro a fim de fazer a preparação. Mas eu tinha muitos problemas. Por causa da anemia, eu sofria com dores musculares. Tinha a falta de alguns dentes e lá colocaram prótese. Pelo cenário que tinha na época, até que foi bom.”
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Em meio à nostalgia dos tempos de desbravadora, ela lembrou também das dificuldades. “Se perdíamos um jogo-treino, ficávamos pensativas quanto ao futuro. Nos esforçávamos muito, chorávamos pelo cansaço nos treinos. Para você ter uma ideia, a gente se alimentava com a mesma comida que era servida aos soldados. E essa dieta não é adequada para um atleta. E os uniformes então? Eram sobras do time masculino. Tinha menina que media 1,50m de altura e as camisas e shorts ficavam enormes. Chuteira, cada uma comprava a sua. Elas calçavam de 34 a 37 e os rapazes usavam a numeração de 40 para cima.”
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Tecnologia une desbravadoras no futebol
Passados trinta anos desse marco de representar o Brasil na primeira Copa do Mundo de futebol feminino, essas pioneiras seguem firmes, e “unidas”. Por meio das redes sociais, elas estão sempre mantendo contato e se falam com frequência por meio de um grupo do WhatsApp. “Nós viramos uma família. E mesmo sem estar perto, torcemos muito umas pelas outras. Quando uma se dá bem, é felicidade para todo o grupo”, afirmou a zagueira Elane. Sempre que pode, ela se encontra no Rio com as ex-companheiras de seleção Fanta, Pelezinha, Marisa e Fia para uma boa resenha.
“A gente até batia uma bolinha, mas a idade vai chegando e as dores vão aparecendo. Tenho que ter cuidado com a minha coluna, pois preciso trabalhar no dia seguinte”, diz. Elane contou que alguns encontros já foram organizados. A ex-atacante Roseli era a encarregada de reunir a turma em São Paulo. “Cheguei a ir a umas três reuniões e conseguimos juntar umas dez meninas.”
Mesmo fora do Brasil, Márcia Taffarel é outra entusiasta dessa iniciativa. “Temos um grupo e várias delas estão nele. A Meg, a Soró, a Suzy, só para citar algumas. A geração dessas pioneiras passa uma mensagem de resiliência, de plantar semente, de lutar pela modalidade. Mesmo à distância, a gente sempre pensa uma na outra”. A CBF ainda nunca olhou para trás para fazer qualquer reconhecimento para elas. Essas homenagens geralmente são entregues ao time masculino.
Outra ex-atleta que também é ligada ao futebol após ter pendurado as chuteiras é Márcia Honório. Atualmente ela trabalha em Caieiras tanto com futebol de campo quanto futsal. “Fico feliz por tudo que fizemos e pela amizade que conseguimos manter após tantos anos juntas. Apesar das dificuldades, tudo valeu muito a pena”, disse ao Estadão.
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Campanha na China e luta pela modalidade
As meninas do Brasil chegaram para jogar a primeira Copa do Mundo de futebol feminino com a expectativa em alta. A performance exibida no torneio internacional experimental de 1988 foi de encher os olhos com o terceiro lugar. No entanto, a eliminação ainda na fase de grupos em 1991 acabou sendo um duro golpe para todo o time. A falta de investimento e estrutura nos anos que precederam o Mundial foram devastadores.
“Os campeonatos eram escassos. Achávamos que os amistosos contra times juvenis seriam suficientes. Mas não foram”, disse Elane.
No torneio realizado na China, que contou com 12 seleções, o Brasil caiu num grupo muito forte com Suécia, Estados Unidos e Japão. No dia 17 de novembro de 1991, o time estreou com uma vitória de 1 a 0 sobre as japonesas. O único gol brasileiro anotado no torneio foi feito por Elane. “Eu estava no segundo pau, e no escanteio a bola sobrou para mim após um desvio. Eu chutei, a goleira foi no lance e fiquei na dúvida se a bola entrou. Foi um gol chorado. Mas ficamos felizes.”
Márcia Honório afirmou que, mesmo diante do adversário mais fraco da chave, o Brasil sentiu o peso da estreia. “Só fazíamos amistosos aqui dentro de casa. Mas em competição internacional é diferente. O Japão deu muito trabalho porque corria demais.”
O cenário mudou nos dois confrontos que completaram a fase de grupos. A goleada de 5 a 0 para os Estados Unidos e nova derrota de 2 a 0 diante da Suécia sacramentaram o retorno antecipado. “A condição física das americanas e das suecas era muito melhor do que a nossa. Eu rompi o músculo da panturrilha de tanto que corri atrás delas”, comentou Soró.
A primeira Copa do Mundo teve como campeão os Estados Unidos. Para o Brasil, o que ficou daquela competição foi o sentimento de pioneirismo. “Sabíamos que estávamos plantando uma ideia. O que eu esperava, era pegar um pouquinho desse reconhecimento. Hoje, se o futebol feminino está com essa estrutura, foi porque lá atrás tiveram mulheres que brigaram por isso. Faço parte disso e tenho muito orgulho do que fiz. Talvez pudesse ter me preparado melhor para o fim da carreira, mas sou uma pessoa feliz”, disse Elane, em meio a um breve intervalo do seu trabalho ao volante, à reportagem do Estadão. “Dá licença que eu estou na luta. Tem corrida para o centro de Campo Grande.”
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