A primeira lembrança que me ocorre quando vejo mundo afora as batalhas iconoclastas, com a irada destruição de imagens, as oportunistas propostas de alteração de nomes de ruas, avenidas, praças, prédios, é uma passagem do penúltimo romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó (1904).
Custódio era honesto, estimado, respeitado e afreguesado confeiteiro, que encomendou a um pintor uma nova tabuleta para o seu estabelecimento: “Confeitaria do Império”, há 30 anos no ramo. Enquanto se pintava a placa, ocorre a Proclamação da República. Temeroso, Custódio não queria expor um nome por conjeturar que os republicanos viessem quebrar as vidraças do estabelecimento. Travou angustiado debate com um amigo, o conselheiro Aires, para saber que decisão tomar.
Se trocasse para “Confeitaria da República”, o ataque poderia vir do outro lado. Aires então sugeriu “Confeitaria do Governo”, mas Custódio retrucou que não há governo sem oposição. Aires ainda propôs que deixasse o nome original, só acrescentando a data da fundação, 1860. Isso talvez o livrasse de possíveis agressões.
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Várias outras hipóteses surgiram na discussão. Custódio pensava: se o Império voltar, como fica minha tabuleta da República? “Talvez convenha esperar um ou dois dias, a ver que param as modas”, disse Custódio, agradecendo as sugestões do conselheiro, pois as pessoas entenderiam que o nome “Confeitaria do Império” fora dado em outro tempo, sem nenhuma conotação política.
As modas não param. Eventualmente, adormecem, mas logo adiante acordam e, tendo sonhado com prováveis adversários ou inimigos, vão ao ataque e impõem o ponto de vista de plantão, em regra o seu, a sua verdade. Nenhuma pessoa é tão perfeita, que não contabilize algum deslize, algum pecado na vida, portanto está sempre sujeita aos tribunais de tocaia. Sendo assim, o rebatismo de ruas, com nomes de pessoas, por exemplo, jamais teria fim.
Algumas cidades, talvez em prudente profecia, optaram por identificar suas ruas com nomes de árvores, de rios, de praias, de outros municípios, evitando, assim, constrangimentos e confrontos desnecessários. Li que no município de Arapongas (PR) as mais de mil e seiscentas ruas têm somente nomes de aves e pássaros, a começar pela própria araponga. Somente o urubu escapou da lista, ao menos por enquanto.
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O poeta Manuel Bandeira (1868-1968), num dos seus magníficos poemas – Evocação do Recife –, relembra: “Rua da União / Como eram lindos os nomes das ruas de minha infância / Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal) / Atrás da casa ficava a rua da Saudade (… ) / Do lado de lá era o cais da rua da Aurora…”
Um dia, quem cultiva o ressentimento, olhará para trás e verá que certos rompantes não valeram a pena. Com o passar do tempo, certas pessoas sempre superarão outras em generosidade, em liderança, em respeito, em abnegação, merecendo as devidas homenagens. Para isso, não me parece necessário suprimir a história de outras, denegrindo ou apagando a imagem de quem não se inscreve na minha visão de mundo.
Para resolver, talvez bom mesmo seria morar na rua Jequitibá, na rua Sol Nascente, na rua Pintassilgo, na rua Ipê, a não ser que não se morra de amor pela natureza.
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