O governo do Estado, por meio de ofício do governador Eduardo Leite à presidência da Assembleia Legislativa, pediu urgência na tramitação do projeto de lei 260/2020, que modifica as regras para cadastro de novos agrotóxicos que poderão ser utilizados nas lavouras gaúchas.
O texto altera o parágrafo 2º da lei 7.747, de 22 de dezembro de 1982, que condiciona a aprovação de novos agrotóxicos no mercado gaúcho à autorização desses produtos em seus países de origem. Ou seja, caso um pesticida tenha seu uso proibido no país em que foi desenvolvido, seu emprego é proibido no Rio Grande do Sul. O novo texto da lei acaba com essa vedação e libera em solo gaúcho os produtos tóxicos vetados em locais como Estados Unidos e União Europeia.
A Associação dos Servidores da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) divulgou nota de repúdio sobre a intenção do governo do Estado em mudar a lei que regula a liberação de novos agrotóxicos. O documento classifica a alteração como um “golpe contra a saúde pública e o meio ambiente”.
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Segundo o conselheiro da Asfepam, Eduardo Santana, engenheiro químico da Regional de Santa Cruz do Sul, que falou em nome do presidente da entidade, Nilo Peçanha, o maior motivo de preocupação com o projeto é a falta de diálogo com a sociedade. Santana destaca que, em vista do regime de urgência, o projeto não passa pelas comissões e não tem audiências públicas, sendo analisada apenas sua legalidade ou ilegalidade, mas sem discussão.
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“Quando abrimos a possibilidade de cadastro de mais agrotóxicos – e agrotóxicos que não têm a segurança comprovada no país onde se desenvolveu a síntese do princípio ativo –, fica muito temerário. Não há uma justificativa clara para a colocação de novos agrotóxicos porque não houve discussão. Falta esse debate. Um governo que fala tanto em diálogo peca em diálogo quando tem esse tipo de atitude.” O representante local da Fepam ressalta que o ato do governo gaúcho, de colocar o projeto em regime de urgência na Assembleia Legislativa, é contrário aos interesses da sociedade.
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A Asfepam ressalta que ainda não recebeu nenhuma manifestação da Assembleia sobre a proposta. A intenção da entidade é retirar o assunto de pauta.
Outro aspecto destacado pela entidade é a importância do cadastro dos agrotóxicos. A Asfepam alerta que, pela falta de clareza, a proposta de lei apresentada pelo governo gaúcho pode até acabar com a obrigação do cadastramento de novos agrotóxicos no mercado e terminar com a obrigação de verificar se estes produtos estão ou não influenciando a saúde das pessoas.
Produtos rejeitados acabam no Brasil, diz pesquisador
O agrônomo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Leonardo Melgarejo, ex-integrante da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, destaca que nos últimos anos o Brasil vem aumentando sistematicamente a compra de agrotóxicos rejeitados em outros países, em virtude de interesses econômicos. “O Brasil importa muito lixo, e isso vem crescendo mesmo diante da inexistência de problemas novos. A maior parte dos venenos é antiga, não é novidade científica, mas variações sobre as mesmas bases e princípios ativos.”
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Mestre em Economia Rural e coordenador-adjunto do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, Melgarejo denuncia a alta de novas permissões de registros de agrotóxicos no Brasil. Segundo dados do Ministério da Agricultura, em 2015 foram aprovados 139 novos produtos no mercado. A quantidade vem aumentando desde então, e em 2019 foram 475 registros.
“Venenos que causam problemas hormonais e degenerativos, vários tipos de alterações metabólicas e sofrimento para as famílias, dos quais estamos livres desde o primeiro governo eleito no Rio Grande do Sul depois da ditadura, vão poder ser usados. O surpreendente é que esta proibição foi votada por unanimidade na Assembleia Legislativa. E o governador pretende que os deputados de hoje atuem como as empresas pretendem, e ele recomenda: em favor da morte”, alerta o pesquisador.
Para o historiador e coordenador da Articulação em Agroecologia do Vale do Rio Pardo (AAVRP), João Paulo Reis Costa, o projeto de lei 260/2020 é um retrocesso, põe em risco a saúde das pessoas e atende somente às necessidades do agronegócio. O professor lamenta que enquanto a agroecologia e a agricultura familiar apresentam avanços nos últimos anos, o Poder Público esteja facilitando ainda mais a colocação de agrotóxicos no mercado.
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“É um projeto que vai na contramão da humanidade. Em qualquer país, um agrotóxico que é proibido em seu local de origem não é levado a sério ou regulamentado. O Brasil, que hoje consome 19% de todo o agrotóxico produzido no mundo, é a grande farra para as empresas transnacionais desses produtos. Isso faz com que tenhamos cada vez mais uma indústria extremamente dependente deste tipo de insumo.”
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Justificativa é equiparar à lei nacional
A Gazeta do Sul tentou contato com representantes do governo para obter um contraponto sobre a necessidade de urgência do projeto e sua justificativa. Foram encaminhados pedidos de informações para as assessorias dos deputados Ernani Polo, presidente da Assembleia Legislativa; Adolfo Brito, presidente da Comissão de Agricultura, e Frederico Antunes, líder do governo, sem resposta até a publicação desta matéria.
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Em sua justificativa, o projeto de lei 260 cita que o controle de agrotóxicos já está regrado em âmbito nacional. “Não existe na legislação federal a exigência, para fins de registro, de que o agrotóxico oriundo de importação tenha o uso autorizado no país de origem, até mesmo porque o efetivamente importante – e mesmo essencial – nos termos do art. 4º da lei federal, é que haja a demonstração do cumprimento de diversas ‘diretrizes e exigências’ dos órgãos federais responsáveis da saúde, do meio ambiente e da agricultura”, cita a proposta. O projeto pode ser acessado na íntegra na página da Assembleia Legislativa na internet (clique aqui).
Saiba mais
Confira a proposta de mudança na legislação que tramita na Assembleia Legislativa:
Lei atual: 7.747, de 22 de dezembro de 1982
Só serão admitidas, em território estadual, a distribuição e comercialização de produtos agrotóxicos e biocidas já registrados no órgão federal competente e que, se resultantes de importação, tenham uso autorizados no país de origem.
Proposta de mudança: projeto de lei 260 /2020, do Poder Executivo
Só serão admitidas, em território estadual, a distribuição e comercialização de produtos agrotóxicos e biocidas, seus componentes e afins, já registrados no órgão federal competente e que sejam cadastrados, respectivamente, nos órgãos estaduais competentes, conforme regulamento.
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