Glória Pires impressiona-se como as coisas ocorrem. “Estava engatilhada para fazer o Flores Raras quando Roberto (Berliner) me chamou para fazer a Nise. Ele estava tendo problemas com outra atriz, que ficou impossibilitada de fazer o papel e me propôs começarmos imediatamente. Disse que adoraria, mas era impossível. E aí o Bruno (Barreto) me ligou dizendo que íamos ter de retardar o Flores. Liguei correndo para o Roberto, expliquei para ele e foi assim que entrei no Nise. A direção de arte já estava em Engenho de Dentro, reconstruindo o Hospital Pedro II e, enquanto o cenário avançava, nós, o elenco, preparávamos nossos personagens. Foram dois meses muito intensos “
Nise, com o subtítulo O Coração da Loucura, estreia nesta quinta, 21, em 83 salas do País. Capitais, cidades importantes do interior. O País está vivendo uma era de turbulência – impeachment e tudo o mais – e o quadro não parece muito favorável às estreias de cinema. Menos ainda a de um drama que retraça a luta de uma pioneira – de uma guerreira – da psiquiatria brasileira para garantir tratamento humano aos internos de hospitais para doentes mentais. Nos anos 1940, numa época em que o internamento podia ser compulsório e os pacientes eram tratados com choques, quando não lobotomizados, a doutora Nise da Silveira introduziu a arte como terapia ocupacional. Ocorre que alguns de seus ‘louquinhos’ eram também grandes artistas e chegaram a ser reconhecidos como tal.
Da atividade da dra. Nise surgiu o Museu do Inconsciente. Um grande cineasta – Leon Hirszman – filmou Imagens do Inconsciente, documentando a obra de três pacientes da dra. Nise: Fernando Diniz, Adelina Gomes e Carlos Pertuis.
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A própria Nise deu muitas entrevistas, inspirou livros, artistas Faltava a cinebiografia. “Só tenho de agradecer ao cinema por me permitir viver essas personagens icônicas”, diz Glória Pires. Refere-se a Nise, claro, e a Lota Macedo Soares, a urbanista/paisagista de Flores Raras. Como se constrói uma personagem que existiu? Só o roteiro basta? “O roteiro do Roberto foi muito bem documentado, mas a dra. Nise foi muito filmada. Existem muitos registros da imagem dela, da voz. Trabalhei com uma fonoaudióloga e também com um preparador de elenco que fez o trabalho corporal do grupo de internos.”
O próprio diretor, presente na entrevista, revela. “Nise não nasceu como um projeto meu. Outro ia dirigir e eu terminei sendo exortado a assumir, quando ele saiu. Mas a verdade é que me apaixonei pela história, pelos personagens.” Glória prossegue – “Roberto era diretor de documentários. Nise é sua primeira ficção. Isso possibilitou uma integração muito grande entre a gente. Sempre fui de dar pitacos nos roteiros dos filmes de que participo, mas nesse caso o próprio Roberto me questionava. E quando a gente terminava a jornada do dia, sentava para discutir, e antecipar, o dia seguinte.” Isso gerou um comprometimento muito grande, não apenas de Glória, mas de toda a equipe. O resultado veio através de um prêmio de melhor atriz em Tóquio e muitos elogios da crítica, mesmo que a Nise de Glória não seja uma unanimidade.
Tem gente que acha sua Nise muito certinha, e ela era ‘louca’ – de que outra maneira uma mulher, a única de sua geração na Faculdade de Medicina da Bahia, iria conseguir desmontar a estrutura retrógrada que alienava ainda mais os loucos? O começo do filme já encerra uma metáfora. Glória, como Nise, chega a esse paredão imenso e começa a bater numa porta de ferro. Não a ouvem, e ela bate mais ainda, como se quisesse arrombar a porta – da instituição em que vai trabalhar. É um mundo masculino, e de cara ela é colocada sob suspeita. O trabalho com os internos é, de qualquer maneira – e de longe -, o melhor de Nise, mas o filme não deixa de revelar a mulher por trás do mito em que se converteu. “Ela sempre foi rebelde, essa é a verdade.
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Lia muito, lia coisas que não eram recomendadas, até (Karl) Marx e, por conta disso, chegou a ser presa. O mais impressionante, e isso descobri depois, por acaso, é que o tio-avô de Lota Macedo Soares, José Carlos, foi o ministro (da Justiça) que ordenou a libertação de Nise e outras 300 pessoas encarceradas por suas ideias. Veja como as coisas se conectam.”
Dando voz, uma identidade a Nise, Glória está convencida de que, tudo o que ela fez, foi por amor e em nome do povo brasileiro, daí a atualidade de sua história. “Sinto-me uma privilegiada fazendo essas personagens. E as faço com base na vivência. Meus pais eram maravilhosos, mas eram pessoas simples, com os pés no chão. Quando falam no meu estilo econômico de interpretar, acho que tem a ver com isso. Não é preciso floreio. Minhas personagens também têm o pé no chão, vão até onde minha perna alcança.” Parece a deixa para falar do Oscar. Glória virou ‘meme’ por causa de sua participação como comentarista do Oscar, na Globo, no começo de março. Nas redes sociais, muita gente caiu matando por sua indecisão em opinar. “Mas não era nada disso”, defende-se. “Me perguntaram uma coisa muito específica, sobre a trilha de um filme e eu achei que seria leviandade opinar sobre algo que não é da minha alçada. Fui crucificada, como se não soubesse nada. É uma coisa de pertencimento. As pessoas, nas redes sociais, se sentem donas. Opinam sobre tudo, mesmo não tendo opinião sobre nada, e o jornalismo está indo atrás” – reclama.
De volta a Nise reflete – o que ficou com ela, dessa personagem imensa? “Acho que a resiliência. Dra. Nise amava as artes, mas não via seus internos, necessariamente, como artistas. Ela os estimulava, mas porque sentia que pintar, desenhar, recortar, esculpir era uma forma de se comunicar para eles, de expressar os demônios que os consumiam. E ela tinha compaixão. Não desistia facilmente, ou não desistia. Foi o que aprendi – quanto maior a dificuldade, maior o empenho.”
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