Eva e Líris apressam-se pelo córrego. A chuva fina as faz procurar refúgio junto à aba projetada da rocha. As duas cobras as precedem. Os sofridos troncos e as machucadas criaturas as seguem. Antes de todos, chegam as abelhas.
Abrigadas na concavidade do arenito, a senhora e a menina tomam assento sobre blocos de rochas esmerilhados pela percolação das águas longevas. Líris acarinha sua boneca. Atenção interrompida por um estampido, seguido pela correria desesperada de um veado. O animal, ainda jovem, estanca de súbito. “Está ferido!”, exclama Eva. O veado-bororó se contorce em dor. Sangra. “Não morra”, suplica Líris. “Me ajuda, bonequinha. Faça alguma coisa.” Angustiada, a menina mostra sua preciosa boneca ao olhar suplicante do pequeno animal. Ele se acalma. Eva o acaricia.
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Aos poucos o veado se recupera. Quem teria atirado contra a indefesa criatura? A reflexão teria se prolongado, não fosse o som de asas arremessadas contra as grades de uma gaiola, só agora percebida. Era um alçapão, que aprisionara um lindo cardeal. Como entender que tais armadilhas ainda persistam? De pronto, Eva liberta o pássaro. Lembra das imagens agonizantes dos animais trucidados sob o olhar “vitorioso” dos impiedosos caçadores e piratas, que substituem a biodiversidade por dinheiro e troféus inertes, testemunhas da insanidade humana.
Enquanto isso, o chuvisqueiro vira chuva. As cobras se aninham junto aos pés de Eva. Nada pedem. Apenas contato. Pele com pele. Eva quase não se mexe. Não quer intervir no momento mágico do aconchego mútuo e muito menos assustar o cervídeo ferido e a ave que se recupera da prisão. Mesmo evitando qualquer movimento brusco, projeta a cabeça para os lados e para o fundo da rocha.
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O que, num primeiro momento, se lhe parecera uma aba de gruta, agora afunila-se em furna aprofundada. Nas paredes, estrias raspadas por possíveis unhas poderosas instigam mistérios. Eva já ouvira falar dos animais muito antigos. No Sanatório, um senhor, de muitas letras e que lia três jornais por dia, costumava contar histórias do tempo dos dinossauros, que conseguiam voar. Também soubera de preguiças-gigantes e tatus enormes que, com suas próprias garras, escavavam seus abrigos. “Aqui poderiam ter vivido alguns deles”, imagina Eva.
Absorta pela crueza do momento, Eva acarinha Líris, que dormita em seu colo. Lembra da criança adormecida na casa do predador, que troca a vida por ganhos pecuniários. Ganhos premeditados, planejados e envernizados por aparências justificatórias. Ganhos, antes de tudo, transmutados em perdas vitais.
Um zumbido alerta-a. Hora de andar, voejar como a borboleta azul logo adiante. Eva acorda Líris, que não abandona sua boneca de pano. Avalia o estado do mamífero e do pássaro. Seguiriam a seu ritmo. Assim, se fazem a caminho, ao lado dos troncos e das criaturas feridas. Aos que iniciaram a jornada se soma uma multidão de excluídos, expatriados, refugiados e desamparados. O riacho, de águas murmurantes, aponta o rumo. Estaria certa, correta? Era justo se fazer acompanhar da menina Líris?
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Porém, é preciso seguir. Não há tempo para retornar. Depois que se toma uma trilha, desvios alongam distâncias. Arrependimentos nos prendem ao passo dado, quando se pode buscar outros destinos, talvez mais auspiciosos. Ao se optar por uma abordagem, outras não se perdem, mas aguardam possibilidades. “Estas, sempre as teremos”, pensa Eva. A certeza do “sempre” rapidamente dilui-se a cada bloco de rocha a ser contornado, a cada subida de barranco, que não apenas margeia o córrego, mas sustenta seu leito.
Para se certificar da rota, Eva procura não perder de vista as duas cobras. Elas, sim, conhecem o caminho. Elas, como as abelhas nutridoras, sabem do propósito. Novamente a dúvida se instala. Não seriam apenas guias ou mensageiras de um roteiro aleatório, não pactuado? E aquele vulto lá adiante? Quem estaria ali, ao lado de um cão atento, como à espera dos que seguiam pelo córrego?
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