Quantos feitos, alegrias e superações cabem em cem anos? Histórias, enquadram-se muitas. Não só de uma vida, mas de um bocado delas, cruzadas no emaranhado de datas que o passar do tempo carrega consigo. A trajetória da aniversariante desta quinta-feira, 27, versa bem sobre isso. Agora centenária, Rovena Emília Kahmann não é somente a matriarca de uma família, mas personagem importante de uma época e, certamente, figura presente na lembrança de muitos que viveram ou passaram por Santa Cruz do Sul.
Ela nasceu Franke, em Linha Dona Josefa – ainda interior de Santa Cruz do Sul. Cresceu numa família pequena, junto dos pais e de um irmão mais novo. Fez o primário na própria localidade. Como era tradicional, ajudava na propriedade rural, onde se praticavam a cultura de subsistência e o plantio de tabaco. Mas era “magrela”. Por isso, a mãe dizia que ela não serviria para o trabalho na roça. Na verdade, desejava que a filha tivesse uma vida um pouco mais fácil que a sua. Então, junto do marido, esforçou-se para que a primogênita pudesse estudar na cidade. E assim, Rovena frequentou o Colégio para Moças da Fundação Evangélica, onde cursou Economia Doméstica.
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Embora tenha obtido uma série de conhecimentos importantes na instituição, o professor que marcaria sua vida não lecionava ali, e sim próximo de onde ela cresceu. Walter Carlos Kahmann dava aulas em Linha Dona Josefa, onde também mantinha um grupo de cantores. Entre uma atividade e outra, conquistou o coração da jovem que, aos 17 anos, tornou-se sua esposa.
Foi ao lado de seu amor que ela, mais tarde, assumiu um importante papel na comunidade santa-cruzense. Em 1947, aos 27 anos, já mãe de uma filha – a segunda nasceria no ano seguinte –, passou a administrar com o marido o internato feminino do Colégio Mauá. Enquanto ele geria o estudo das internas, ela encarregava-se de manter o bom funcionamento da imensa casa, de dois pisos, atuando na limpeza, lavanderia e cozinha. Cuidava de tudo como se fosse o próprio lar. Nos períodos de férias, dedicava-se à faxina geral, com colchões de palha ao sol, lavagem de cortinas e engomação de toalhas, além de reparos e pinturas. O casal também se esmerava em preparar compotas das mais variadas frutas, as quais as filhas auxiliavam a descascar com capricho, para servir de sobremesa durante o ano seguinte.
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Dona Rovena contava com alguma ajuda – havia uma cozinheira e lavadeira e duas internas que trabalhavam em troca de moradia e estudo. Mas sempre esteve envolvida em todas as tarefas e trabalhou muito. As roupas eram lavadas a mão em um grande tanque de concreto (no inverno, a água quase congelava) e estendidas ao ar livre ou dentro de um galpão. O fogão era a lenha e não havia eletrodomésticos. A geladeira, adquirida mais tarde, era abastecida com blocos de gelo, envoltos em serragem.
O internato chegou a abrigar cerca de 30 moças. Não à toa, Frau Kahmann, como era conhecida, ainda recorda com carinho das muitas estudantes que passaram por lá. Da mesma forma que, certamente, muitas destas hoje senhoras também devem manter a “mãe” emprestada na lembrança e no coração.
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No internato, convívio como se fosse em família
Antes de o casal Kahmann se estabelecer em Santa Cruz do Sul, fixou residência por dois anos em Candelária. Lá, Walter foi diretor do Colégio Evangélico. Porém, a 2ª Guerra Mundial trouxe tempos difíceis tanto para o educandário, que dependia muito de recursos vindos da Alemanha, quanto para descendentes germânicos no Brasil.
Foi preciso apostar em novos rumos. A partir da indicação de ex-colegas de seminário, onde havia estudado, o professor conseguiu colocação no Colégio Mauá, para atuar com Física e Matemática. Depois, ele e a esposa foram convidados a assumir o internato feminino da instituição. “Fiquei assustada com a proposta. Era uma responsabilidade muito grande. Mas comecei a pensar que eu conhecia a vida de internato, tinha estudado um ano em Santa Cruz assim. Então, tomei essa experiência de exemplo e criei coragem”, relembra.
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O internato era muito bem conceituado. Havia muitas regras e disciplina, o que não impedia a construção de laços. “Éramos uma família. No refeitório, tinha duas mesas grandes. Sentávamos todos juntos, como pais e filhos”, orgulha-se a centenária. Quando as mais velhas começaram a se interessar por namoro, Rovena e Kahmann bancaram a “linha dura”. Da calçada os pretendentes não podiam passar. Afinal, observa, tinham que honrar a confiança que os familiares depositavam no casal. A missão foi desenvolvida por eles ao longo de 16 anos. Depois, adquiriram uma casa, mudaram-se e passaram a novas mãos a instituição, na qual deixaram sua marca.
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Entre seus gostos, livros, música e animais
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Dona Rovena tem muitas histórias para contar. Mas, para falar de si mesma, poupa as palavras. As filhas, Helga Haas e Christa Fensterseifer, descrevem-na como uma mulher vaidosa, com grande disposição para o trabalho e com gosto capaz de apreciar da cultura às simples coisas da vida. Contam que ela sempre foi de cuidar da aparência, vestindo-se bem. Muitas peças eram costuradas e tricotadas por ela própria. Algumas arrancam elogios até hoje. Também tocava muito bem cítara e flauta doce e sempre teve boa voz para o canto. Um de seus lazeres favoritos era frequentar a Ordem das Senhoras Evangélicas (Oase) e suas programações.
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Embora “prendada”, Rovena também foi uma mulher moderna. O investimento de seus pais em estudos rendeu-lhe formação incomum para a época. Por volta dos 40 anos, aprendeu junto com o marido a dirigir, e dizem que conduzia melhor do que ele. Lia e escrevia em alemão gótico, o qual conheceu no Colégio para Moças. Sempre amou animais, jardinagem e literatura. A leitura, entretanto, teve de abandonar há algum tempo por dificuldades na visão. Em contrapartida, segue ligada no rádio, sua grande paixão. Ouve de músicas (que a fazem sonhar, como diz) aos noticiários. Assim, está sempre bem-informada. “Tenho dois rádios prontos. Quando acaba a pilha de um, já vou direto para o outro”, relata.
Viúva há quase 20 anos, há um ano e meio, por decisão própria – Jetz ist Zeit (agora é hora) –, mudou-se para o Solar Ana Nery, onde tem o cuidado especializado da casa e vive cercada pelo carinho dos familiares (além das filhas, o genro Hélio, o neto Átila e esposa Richele e os bisnetos Rafael e Alexandre) e dos muitos amigos, de ontem e de hoje, que fez ao longo da vida.
Sobre o segredo para chegar aos 100 anos, ela diz com toda a sua lucidez que não conseguiu percebê-lo, pois o tempo passou rápido demais. Talvez a receita esteja na gratidão.