Cultura e Lazer

Francisco Bosco: é recomeçar pelo be-a-bá

Não faz meio ano que o ensaísta e filósofo carioca Francisco Bosco, de 46 anos, lançou pela Todavia o livro O diálogo possível: por uma reconstrução do debate público brasileiro. Com a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no último domingo, 30, para o terceiro mandato no Palácio do Planalto, em sucessão ao atual presidente Jair Bolsonaro, talvez esse livro mais do que nunca precise de espaço na biblioteca ou na mesa de cabeceira da maioria dos que pensam (ou deveriam começar a pensar) a gestão dos ânimos no País.

Ainda antes da própria conclusão do segundo turno, Bosco concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul. As questões foram enviadas por e-mail, e ele prontamente respondeu, concentrando a reflexão sobre quais as condições para que a nação finalmente se liberte da polarização tóxica. E, mais ainda, sobre que futuro enxerga para uma sociedade sempre tida como tão ordeira, tolerante e pacífica, ao menos na imagem de si que difundia para o mundo. Figura popular e respeitada no ambiente da televisão, o apresentador do programa Papo de Segunda, no GNT, carrega no nome de escritor o vínculo com o pai, o músico João Bosco.

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Conversar é preciso

Apartado e alienado do mundo real que o cerca, o cidadão brasileiro parece ter concentrado toda energia e atenção no mundo imaginário das redes sociais e das plataformas digitais. E ali alimenta e vê retroalimentar-se um debate acirrado, inconciliável e irreconciliável, por vezes em torno de temas e assuntos fúteis, estéreis, apoiado em sucessivas fake news compartilhadas de parte a parte.

É sobre o embate (que jamais chega ao plano do debate sadio) nesse terreno movediço que o ensaísta Francisco Bosco reflete. Mas a avaliação, lúcida, acurada, sábia, da conjuntura social e política que levou ao momento atual da história brasileira pode ser conferida na íntegra no livro O diálogo possível, lançado pela Todavia.

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Espremido entre dois polos, duas frentes de batalha, dois campos em conflito e que não relutam em lançar mão de todas as armas (entre as quais as famigeradas fake news), o cidadão brasileiro que só quer viver em paz e sobreviver com o menor dano possível (à saúde física e mental) a sua subsistência a tudo assiste: estarrecido.

Ficha

O diálogo possível, de Francisco Bosco. São Paulo: Todavia, 2022. 416 páginas. R$ 89,90.

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Entrevista – Francisco Bosco, escritor e ensaísta

  • Magazine – Em livro, o senhor propõe a possibilidade de diálogo no conflagrado ambiente político brasileiro. Quais as condições para que esse diálogo se estabeleça?
    Francisco Bosco – Em primeiro lugar, é preciso ter a consciência de que as condições fundamentais para o diálogo da cidadania, que é o debate público, já foram perdidas. Agora se trata de uma tarefa de evitar o agravamento do quadro e, com o tempo, procurar construir um novo espaço público capaz de conciliar o caráter inclusivo com a desalienação, a desmistificação e a desinflamação do debate.
    O Brasil se encontra em um processo de divisão social sem precedentes, em suas características, e bastante avançado em sua profundidade. A divisão social brasileira, pelo menos do século 20 em diante, foi em geral uma divisão socioeconômica: povo versus oligarquias (na Primeira República), povo versus elites econômicas (ao menos retoricamente, durante o lulopetismo). Ou uma divisão político-ideológica: a polarização, a la Guerra Fria, entre esquerda e direita às vésperas do golpe de 1964, e a guerra assimétrica entre Estado e sociedade civil (sobretudo as pessoas democratas e de esquerda) durante a ditadura.
    Agora, a divisão social no Brasil é de outra natureza. Tal como está acontecendo em diversos países do mundo, com especificidades locais, o eixo da clivagem passou a ser a cosmovisão dos dois grandes grupos que se opõem. De um lado, tradicionalistas; de outro, progressistas. No limite, são esses os termos que definem a divisão brasileira. O bolsonarismo é, como se sabe, um amálgama heterogêneo, mas quase todos os seus subgrupos são, de alguma forma, tradicionalistas: do agro do mega Centro-Oeste aos evangélicos; dos trogloditas das motociatas aos conservadores assustados com a expansão da agenda das minorias, sobretudo no campo dos gêneros e da sexualidade (os faria limers e liberais ricos em geral são talvez os únicos subgrupos bolsonaristas não tradicionalistas).
    Do outro lado estão os progressistas. E aqui é preciso entender que houve um grande movimento da esquerda desde os anos 1960, década em que esse campo iniciou um processo de inflexão rumo a uma perspectiva mais comportamental e menos ligada a questões socioeconômicas. Essa perspectiva se radicalizou muito nos últimos dez a 15 anos, e, com isso, se estabeleceu a dinâmica de retroalimentação de identidades opostas (tradicionalistas versus progressistas), dinâmica que não para de se intensificar.
    Como frear e reverter esse processo? Esse é um problema a ser resolvido coletivamente. É um problema complexo, que envolve muitos fatores. Em meu livro, eu trato de dois dos principais: a lógica do debate público nas redes sociais, que alimenta a divisão social; e a péssima qualidade das informações nesse mesmo espaço, que mistifica o debate, falsificando os problemas e inviabilizando qualquer solução.
  • É possível a um país subsistir no que tange a perspectivas para os seus cidadãos em um ambiente tal?
    Penso que não é possível. Para uma sociedade se desenvolver, é preciso que haja consensos amplos em dimensões fundamentais (política, econômica, social etc.). A divisão brasileira é tal, nesse momento, que impede qualquer caminho de se consolidar; todas as dimensões estão em sistemático impasse. No meu entender, não é exagero retórico (típico dos dois lados do embate, aliás) dizer que já estamos vivendo uma guerra civil fria. “Guerra civil” porque o bolsonarismo tem muitas características de uma facção: é coeso, hiperengajado, atua com intimidação e violência real no espaço público, tem caráter nacionalista e religioso, disputa o poder institucional e procura se armar. O progressismo, por seu lado, é bem mais difuso, menos mobilizado, tende a recusar a violência e o armamento civil. Mas não deixa de ser um grande grupo de oposição, com uma franja radicalizada nas questões identitárias, e cuja performance discursiva realimenta sistematicamente o campo oposto.
    Portanto temos uma divisão social estruturada, se aprofundando a todo vapor e penetrando em todos os tecidos da experiência social: padres e fiéis são hostilizados até dentro de igrejas; evangélicos são perseguidos quando não se alinham à facção bolsonarista; a Polícia Federal é recebida com fuzil e granadas; militantes espancam repórteres; crianças de 5 anos repetem como marionetes de pais irresponsáveis o nome de lideranças políticas, hostilizando outras crianças; donos e clientes de estabelecimentos comerciais são boicotados e ameaçados por não serem bolsonaristas, em cidades do Paraná e de Santa Catarina; e até um obstetra dá à luz um bebê enquanto constrange os pais, atônitos e humilhados, a declarar voto em Bolsonaro. Esses são traços de guerra civil. Mas, por óbvio, guerra civil fria, em larga medida, porque as instituições brasileiras ainda são resistentes, a democracia ainda não se transformou numa anocracia, a imensa maioria da população ainda está desarmada, a cultura brasileira tem certa resistência ao tribalismo, entre outros fatores.
  • Na polarização, o Brasil reproduz um modelo, ou há algo de único no caso brasileiro?
    Há traços em comum com outros países, mas há traços específicos também. Do lado do tradicionalismo, esse campo não é assombrado e alimentado aqui pelo problema da imigração e do medo que os “filhos do solo” (os brancos dos EUA, por exemplo, ou da França) têm de ver sua cultura subjugada por hispânicos, asiáticos ou muçulmanos (no caso francês).
    Do lado do progressismo, a perspectiva identitária (que não deve ser confundida com a posição política antirracista, antimisógina etc.) encontra no Brasil os anticorpos que cinco séculos de experiência biocultural miscigenante oferecem como resistência ao tribalismo. Nesse sentido, um país como os EUA, com sua história hiper-racista e, já em etapa democrática mais recente, multicultural, carece desses mesmos anticorpos. No Brasil, de história hiper-racista, mas, ao mesmo tempo, miscigenada, o tribalismo encontra resistências que, infelizmente, alimentam o campo tradicionalista (mas não se reduzem a ele: há muitas pessoas antirracistas que desaprovam premissas e métodos que caracterizam o que se pode chamar de movimento identitarista).
  • O senhor cita no livro o embate entre PT e PSDB, no passado. Em algum momento houve algo sequer parecido com o perfil atual de enfrentamento e recíproco “cancelamento”?
    Sobre esse ponto, meu objetivo no livro é mostrar que, durante toda a Nova República, PSDB e PT contribuíram, com suas recíprocas representações deformadas, para a degradação dos ambientes institucional e social. É falso que o PSDB dos anos 1990, o dos cabeças brancas, era “neoliberal” e legou uma “herança maldita”, como propagandeou durante anos o PT. É falso que a eleição de 2014 teria sido fraudada, como alegou Aécio Neves. E é falso também que o PT era “o partido da corrupção”, como a oposição propagandeou a partir do chamado “mensalão” até o chamado “petrolão”. A corrupção no Brasil é sistêmica, endêmica, e atravessa as ideologias e os partidos.
    Todos esses comportamentos são violações do que os cientistas políticos Levitsky e Ziblatt chamam de princípio da autocontenção, ou comedimento (forbearance, em inglês): a obediência à consciência de que os golpes baixos podem produzir ganhos eleitorais imediatos, mas degradam as instituições e a vida social a longo prazo.
  • Num país tão dividido, o que poderia fazer emergir uma terceira via, ou uma válvula de escape?
    A expressão “terceira via” foi mobilizada de forma um tanto mistificadora durante esse período eleitoral. Sua premissa é a de que Lula e Bolsonaro representam, ambos, pontos extremos do espectro político. Isso é evidentemente falso. Bolsonaro é um projeto de autocrata. Lula é um democrata (cujo governo falhou gravemente ao corromper a dimensão eleitoral da democracia, por meio do esquema conhecido como “petrolão”). Lula, portanto, está no mesmo campo dos demais candidatos, que é o campo democrático. Apenas Bolsonaro está fora dele.
    Nesse sentido, a terceira via é uma farsa. Mas nós precisamos, sim, de uma terceira via no sentido de uma outra liderança política e uma outra base social que sejam capazes de parar a retroalimentação da divisão social entre tradicionalistas e progressistas. Essa terceira via pode ser de centro-direita ou centro-esquerda. Ora, Lula e o PT são de centro-esquerda; o problema é que o rótulo de corrupto pegou em ambos de tal forma que ele impede o apaziguamento da sociedade brasileira. Além disso, o petismo e o parapetismo costumam ativar uma retórica progressista cujas características produzem medo e ódio nos tradicionalistas.
    Será preciso criar (talvez organizar seja a melhor palavra) um campo, seja de centro-direita ou centro-esquerda, livre dos gatilhos dos acontecimentos políticos dos últimos anos que disparam ressentimentos em ambos os lados: lava-jato, impeachment de Dilma Rousseff, esquemas de corrupção… E que apresente uma retórica desinflamada, característica de uma atitude epistêmica mais honesta, não capturada pelas lógicas de grupo.
    Isso é difícil, porque as lógicas de grupo exercem grande poder de atração, assim como o carisma dos líderes políticos e a estrutura simples da retórica populista (“nós contra eles”). Por outro lado, me parece cada vez maior o cansaço de grande parte da sociedade civil brasileira com essa situação de polarização que já se tornou guerra civil fria. Muita gente, me parece, não aguenta mais essa transformação da sociedade civil em militantes, e gostaria que a política voltasse a ser um meio (para vivermos melhor em sociedade), e não um fim em si mesmo.
    Ou seja, me parece que há uma demanda em formação por um outro campo. Mas ele não encontrou espaço para prosperar nessa eleição por causa do fenômeno duplo e recíproco do antibolsonarismo e do antipetismo: os antibolsonaristas se agregaram em torno de Lula para acabar logo com esse pesadelo que é o governo Bolsonaro. E os antipetistas fizeram o mesmo em torno de Bolsonaro para evitar a volta de Lula e o PT.
  • O componente das mídias sociais, das plataformas digitais, que papel tem no recrudescimento do debate?
    Papel enorme, decisivo, fundamental. As redes sociais são um ambiente imaginário, para usar o termo psicanalítico. Isto é, ambiente do narcisismo, das lutas por reconhecimento, da formação de grupos, da agressividade. Em um ambiente assim, articulado com o princípio dos algoritmos formadores de bolhas, a tendência é que a lógica de grupo se imponha e, com ela, o debate público se torne disfuncional. No grupo, a atitude epistêmica do indivíduo se transforma: ele abandona o compromisso com a interpretação mais precisa da realidade, doa a quem doer, e abraça o compromisso com os prazeres narcísicos obtidos no conforto do grupo.
    Ocorre que boa parte da sociedade vive grande parte de seu tempo nessas redes. Então as pessoas estão vivendo sob um regime de imaginarização tão forte que isso está extrapolando o ambiente das redes e adentrando as interações sociais concretas. Aí a chance de agressão, de violência, aumenta muito.
  • O senhor enfatiza a necessidade de mudar até a linguagem. Por quê?
    As mudanças fundamentais devem ser na atitude epistêmica, na abertura cognitiva, na busca honesta pelas melhores informações históricas e teóricas, pelos melhores argumentos, pelos conjuntos de evidências. Isso não é uma perspectiva elitista. A sociedade está se informando como nunca; só que está se informando muito mal. É preciso melhorar a qualidade dessa informação; mas isso depende sobretudo de uma desativação da lógica psicoafetiva das pessoas, que as mantêm gozando com a dinâmica do grupo.
    Quanto ao tipo de comunicação, seria ingênuo esperar que as instâncias diretamente ligadas aos processos eleitorais adotem uma comunicação menos degradante e mais verdadeira; ao contrário, a tendência é pela “carlos bolsonarização” e o janonismo, que são duas faces da mesma moeda.
    Mas a sociedade civil deveria recuar no seu militantismo abraçar uma comunicação não violenta, isto é, mais baseada na escuta, na abertura real aos problemas do outro, às perspectivas do outro, a fim de quebrar as resistências recíprocas e encontrar um campo de conversação possível.

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Heloísa Corrêa

Heloisa Corrêa nasceu em 9 de junho de 1993, em Candelária, no Rio Grande do Sul. Tem formação técnica em magistério e graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Trabalha em redações jornalísticas desde 2013, passando por cargos como estagiária, repórter e coordenadora de redação. Entre 2018 e 2019, teve experiência com Marketing de Conteúdo. Desde 2021, trabalha na Gazeta Grupo de Comunicações, com foco no Portal Gaz. Nessa unidade, desde fevereiro de 2023, atua como editora-executiva.

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