Foi pensando em reverter a destruição causada pelas obras de duas importantes rodovias da região – as BRs 290 e a 471 – que o agrônomo José Antonio Lutzenberger criou um santuário. Há 32 anos, após ganhar um importante prêmio internacional por sua brava atuação na defesa do meio ambiente, o ecologista aplicou os recursos na compra de uma área de 30 hectares no interior de Rio Pardo, perto da divisa com Pantano Grande, para instalar lá o Rincão Gaia.
Oriundo de uma época na qual quem falava da natureza era visto com desconfiança, o porto-alegrense filho de imigrantes alemães transformou em lagos as feridas nas rochas, abertas para extração de pedras, e deixou fértil uma terra estéril, usando um de seus conceitos preferidos: “Como iremos resolver isto? Precisamos transformar um problema em uma oportunidade”. Foi repetindo esse mantra e deixando a vida agir que ele materializou seu legado de luta pela mãe natureza, visível e palpável em um ambiente plenamente recuperado.
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A capacidade natural de se regenerar
Muito mais do que os seres humanos, uma grande parte dos seres vivos consegue se regenerar após traumas e mudanças bruscas sofridas. Como as estrelas-do-mar, que ao perder parte de sua estrutura têm a capacidade de crescer novamente, a vida conseguiu reencontrar seu curso no Rincão Gaia.
A área de 30 hectares localizada às margens da BR-290, próximo à divisa dos municípios de Rio Pardo e Pantano Grande, está curada. As feridas causadas no basalto, transformado em brita para servir de base ao asfalto da própria 290 e da BR-471, sangravam a céu aberto quando Lutzenberger conheceu o local, na década de 1980.
Na época, o espaço que fazia parte de uma fazenda iria se tornar um aterro sanitário, para ser o depósito de lixo de Rio Pardo. “Como é possível tratar uma ferida com mais doença? Era preciso recuperar com vida este local”, repete o guia do Rincão Gaia, Alexandre Rates de Freitas. Ele é um dos profissionais que recebem visitantes no santuário ecológico e foi o guia da Gazeta do Sul nesta reportagem.
Rates conta que Lutzenberger ganhou, em 1988, o prêmio Right Livelihood, uma espécie de Prêmio Nobel alternativo. A distinção, recebida em Estocolmo, na Suécia, foi suficiente para conseguir o capital necessário para compra da área desmatada.
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A criação do Rincão Gaia aconteceu em 1987. Na época, Lutzenberger prestava assessoria ao então proprietário da área. Ele recebeu parte das terras no lugar de seus honorários profissionais e, em seguida, adquiriu outra parte com recursos próprios. O prêmio, recebido um ano depois, ajudou a integralizar o capital.
O ecologista também teve o apoio, por nove anos, da instituição alemã HeinrichBöll Stiftung, que financiou a construção da Casa Comunal e de galpões de trabalho, no contexto de um projeto pioneiro de promoção da agricultura orgânica junto a produtores familiares do Estado. “A filosofia dele está aqui, em cada espaço. É preciso deixar a vida mostrar-nos o caminho. Isso é o que nós fizemos aqui”, disse o guia.
Passadas pouco mais de três décadas entre a aquisição da área e o início da operação de salvamento, o Rincão hoje é uma terra viva. As crateras criadas para extração de pedra – uma com 2 hectares de extensão e outra com 7 mil metros quadrados – encheram-se com a chuva.
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A maior transformou-se no Lago das Estrelas, local de contemplação no qual, à noite, é possível observar o cosmos. Na menor, a natureza quis utilizar o espaço para criar um banhado. “Tudo cresce de forma natural aqui. A interferência humana sempre se dá em diálogo com a natureza, potencializando o seu desenvolvimento pleno”, diz o guia.
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Acima de tudo, a vida e suas formas de coexistência
A estrutura operacional do Rincão Gaia divide-se em três partes. A primeira delas, conhecida como Aldeia, reúne a edificação principal, a Casa Comunal – residência que era habitada por Lutzenberger na época em que ele vivia lá –, mais uma casa de hospedagem. Ainda compõem essa área os jardins com plantas nativas e exóticas.
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Por ter percorrido o mundo todo, Lutzenberger trouxe espécies de várias partes da Terra. Um passeio em meio às construções descortina o caminho com Papyrus, originais do Egito, plantas carnívoras, nas estufas que recriam o clima de deserto, com suculentas de todos os tipos, ao lado do capim santa-fé, que também serve de telhado no Rincão.
O segundo setor é chamado de Corredor Ecológico. Concentra diferentes tipos de plantas, recriando pequenos ecossistemas que exibem a pujança da vida natural. Junto a ele estão o Lago das Estrelas e o banhado, formado naturalmente em uma das pedreiras desativadas.
O terceiro setor guarda a criação de animais. Gado leiteiro, galinhas, ovelhas e porcos ajudam a sustentar os seis funcionários que trabalham no Rincão Gaia, assim como os hóspedes que visitam o espaço. Todo o excedente se transforma em produto. Os porcos são criados no chão de terra e lama, não nos tradicionais chiqueiros, para que fucem à vontade. “A vida é diversificada, simples e completa. Assim sempre nos ensinou Lutzenberger, assim ela continua aqui no Rincão”, sentenciou Alexandre Rates, o guia do Gaia.
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O modelo ressalta a importância da harmonia na produção rural, tema de centenas de formações realizadas na década de 1990, por produtores rurais que vinham até o Rincão beber da sabedoria de Lutzenberger.
A SINFONIA QUE NUNCA FICARÁ PRONTA
Em 2005, três anos após a morte de Lutzenberger, foi lançada a primeira biografia autorizada dele. O título A sinfonia inacabada, de Lilian Dreyer, faz uma alusão à obra de Beethoven, comparada ao Rincão Gaia.
O espaço escolhido por ele para materializar o cuidado com o meio ambiente permanece em constante modificação. A própria pandemia fez com que várias rotinas fossem alteradas.
A capacidade de hospedagem para grupos foi reduzida de 40 para 20 pessoas. Todos devem usar máscara, com distanciamento e tudo mais, como manda o figurino dos decretos municipais. Ocorre que o lugar oferece também um tipo de microturismo, com visitas com ou sem hospedagem, ao gosto do visitante.
O acesso ao Rincão Gaia precisa ser agendado. A recepção só ocorre quando combinado. Na Casa Comunal, a edificação central da propriedade, a hospedagem funciona em esquema de hostel, com pensão completa. No mezanino, camas posicionadas uma ao lado da outra sugerem uma cena retirada dos filmes da Disney, da casa dos Sete Anões. Parece que a qualquer momento a Branca de Neve sairá do bosque e surgirá na sala.
O efeito lúdico do Rincão Gaia desperta atrás de cada arbusto. Também há seis quartos e uma cabana familiar privados. Ainda existe a possibilidade de acampar sob um grande telhado de santa-fé, pernoitando em um local que imita uma grande oca indígena.
O prazer de trabalhar no Gaia
Mira Silveira pilota o fogão do Rincão Gaia há 17 anos. Ela é uma das alquimistas que misturam os alimentos – parte deles da própria terra – na confecção de receitas que carregam a sapiência das avós.
Recentemente ela criou biscoitos de mel, utilizando leite e outros substratos do Rincão. “Para mim é um privilégio trabalhar aqui. Esse é o emprego da minha vida.”
Mira ajuda na manutenção do Gaia. Parte da receita necessária para a conservação do santuário vem de doações, de recursos da família Lutzenberger e da venda de produtos elaborados na cozinha do Rincão Gaia e de artesãos regionais. Queijos, biscoitos, doces e geleias, assim como livros e camisetas, são recordações que ajudam no caixa.
A hospedagem também. Toda e qualquer visita precisa ser agendada pelo WhatsApp do Rincão Gaia. O número é (51) 99725 3685, ou então o e-mail reservas@fgaia.org.br.
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O pai que era só amor e atenção
Lara Lutzenberger é a filha mais nova do ecologista. Assim que ele morreu, em 14 de maio de 2002, ela assumiu a presidência da Fundação Gaia, instituição da qual o Rincão Gaia é propriedade.
Ao relembrar o passado, a época da criação da instituição, Lara diz que o pai era uma das pessoas mais acessíveis que ela já conheceu. Cumprimentava e conversava com o cuidador de carros e com o CEO de uma empresa com o mesmo respeito.
“Naquela época, ele recebia muitas cartas. Eram pedidos de palestras, de participações em eventos. Ele assinava um monte de revistas científicas também. Para dar conta de tudo, lia até quando se barbeava”, recordou. Lutzenberger, que falava cinco línguas, percorreu o mundo e sempre deixou gravada sua marca na proteção à vida.
Segundo Lara, seu pai sempre viu o ser humano como parte da natureza. Assim, reforçou o seu pensamento sobre a postura do homem no planeta. Na simplicidade com que ele conduzia a vida, os negócios – enquanto empreendedor no tratamento de resíduos industriais –, na forma como ensinava, Lutzenberger deixou como herança o amor e a disponibilidade.
Lara divide com a irmã mais velha, Lilly, o nome e a história do pai. Mais próxima, por ser a presidente da fundação, ela sabe que Lutzenberger foi um visionário. Foi um dos primeiros a enxergar a necessidade de cuidar da natureza e se transformou em um expoente em seu tempo. Até hoje, o agrônomo porto-alegrense é um dos grande personagens da ecologia, respeitado ao redor do mundo. “Ele foi autêntico e íntegro, defendia aquilo que acreditava, questionando modismos e interesses particulares, mesmo sob críticas.”
José Lutzenberger morreu aos 75 anos, internado para tratamento de um enfisema respiratório e insuficiência cardíaca. Um dia após sua partida, o corpo dele foi sepultado junto ao Bosque dos Eucaliptos, em uma das áreas do Rincão. Mas Lutzenberger ainda habita cada canto do espaço.
Ainda na década de 1990, a Gazeta do Sul conheceu Lutzenberger. Em março de 1993 ele abriu as portas do Rincão Gaia para os jornalistas, que, curiosos, queriam contar como estavam os espaços desmatados em nome do progresso. No calor do fim do verão, vestindo calção de banho sob a camisa branca, o ecologista recebeu a Gazeta, conforme mostra a fotografia em preto e branco da época.
Gaia
Na mitologia grega, Gaia é a mãe-terra, como elemento principal e indispensável à vida. Ao redor do mundo, a expressão ilustra o cuidado com o meio ambiente, emprestando o nome a diferentes fundações e instituições que, como a de Lutzenberger, dedicam-se a preservar a vida.
Gaia é a mãe, mas é também a vida. A expressão contempla a totalidade da existência dos seres vivos. O conceito é usado por pesquisadores da Nasa, a Agência Espacial Norte-Americana, para definir a possibilidade de vida extraterrestre. Em Pasadena, na Califórnia, os cérebros da Nasa descobriram que para ter vida um planeta precisa estar em sintonia, funcionando assim como um grande organismo. Nesse sentido, Gaia é a mãe e a própria vida.
LIGAÇÕES
Pelo menos dois fatos importantes ligam José Lutzenberger a Santa Cruz do Sul. Quem recorda essas histórias é outro José, o José Alberto Wenzel, geólogo, escritor e ex-prefeito santa-cruzense.
Wenzel recorda que o primeiro contato com o ecologista ocorreu em 1993, quando Lutzenberger havia sido contratado para avaliar o manejo de árvores em Santa Cruz. “Naquele ano, o prefeito era o Edmar Hermany e Lutzenberger veio contratado pela Prefeitura”, disse.
Pouco tempo depois, quando tiveram início as obras de instalação do Lago Dourado, ele retornou ao município, agora como consultor. “Ele esteve presente em momentos decisivos para Santa Cruz do Sul, tanto na implantação de obras como o Lago Dourado quanto na formação continuada de profissionais. Eu mesmo fiz vários cursos com ele. Ficávamos embebidos ao ouvir Lutzenberger”, frisou Wenzel.
O geólogo recorda um dos momentos com o ecologista, registrado para sempre na memória. Era um fim de tarde no Rincão Gaia, e Wenzel seguiu na direção do Lago das Estrelas. No local conversou com Lutzenberger até o cair da noite, quando as estrelas começaram a iluminar o céu. “Eu me lembro até hoje. Curioso, ele queria saber sobre geologia, e eu queria saber mais a respeito da sabedoria dele. Foi um encontro muito bonito, não há como esquecer”, complementou Wenzel.
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