Assim como o Brasil, a Rússia abriga “muitos países” em um só. A cidade de Kursk, onde Rafael Rocha, 21 anos, reside desde 2013, é um desses territórios que se mantêm longe dos holofotes em plena Copa do Mundo. É de lá que o santa-cruzense apresenta suas percepções neste Longe de Casa. Não é sobre a Copa. É sobre um pedaço do maior país do mundo em extensão, sua história e a trajetória de um conterrâneo que aposta as fichas no rígido ensino da Rússia.
Seria coragem, determinação ou a energia jovem que motivaram Rafael, então com 17 anos, a cursar medicina em plena Rússia? Também! Mas teve o exemplo do irmão Felipe, que desde os 13 anos já estava no mundo, e a pegada “se eu não fizer agora, não faço mais” sempre muito presente nas intenções do estudante. Foi assim que, dois meses após se formar no Colégio Mauá, ele aterrissou em Moscou e se impressionou com o alfabeto cirílico. Na ponta da língua, só sabia falar (“me ajude, por favor”). De resto, o bom e velho inglês era o idioma com o qual iria se virar. “Os russos são um pouco complicados, não têm muita paciência, mas depois que você estuda a história deles, entende.”
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Uma das primeiras disciplinas cursadas na Universidade Médica Estatal de Kursk (KSMU) foi História da Rússia. “Na época, meu professor disse: é inadmissível que vocês passem seis anos da vida aqui sem saber a história do lugar onde pisam. Naquele momento, eu entendi que isso fala muito sobre o povo russo.” Em sala de aula, ao lado de acadêmicos da Malásia, Índia e Tailândia e outras nações, aprendeu que, ao longo dos séculos, os russos sofreram um bocado.
Muitas vezes eles são agressivos e de poucas palavras porque têm medo. Isso é reflexo de uma construção histórica que teve início quando os vikings invadiram o território, depois os mongóis, e, por fim, houve a guerra.” Esse passado marcado por cicatrizes, na visão de Rocha, explica as razões de os russos – especialmente os que residem no interior – ainda não se sentirem confortáveis com a globalização. Em cidades como Moscou, a recepção já é mais amigável. O clima festivo da Copa também ajuda.
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Nesses quatro anos em que reside em Kursk – a 500 quilômetros de Moscou –, Rafael Rocha não viu manifestações de carinho entre casais homossexuais. Gays, lésbicas, bissexuais e transexuais sofrem constantes perseguições, agressões e humilhações no país. E essa situação só piorou desde que a chamada “lei de propaganda gay” foi aprovada pelos legisladores locais em 2013. A norma proíbe a distribuição para menores de idade de conteúdos que defendam os direitos LGBT ou equiparem relacionamentos heterossexuais às relações homossexuais. Em Moscou, por ser uma cidade “mais aberta”, foi a única vez que o santa-cruzense viu um casal de lésbicas de mãos dadas. E pensou: “corajosas.”
Logo quando se mudou para Kursk, Rafael Rocha não entendeu: por que tantas floriculturas abertas 24 horas? Quem compra flor às 4 da manhã? A dúvida rapidamente foi esclarecida por uma professora. “É da cultura (machista) russa.” Por lá, quando os maridos estendem a noitada bebendo, passam na loja para comprar uma flor a fim de pedir o perdão da mulher. “Ainda prevalece a ideia de que a mulher precisa de homem para ser cuidada. Por isso almejam tanto o casamento e relevam certos comportamentos.”
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Impossível falar da Rússia e não comentar sobre uma das suas bebidas mais famosas: a vodca. A história de que ela foi inventada para resistir ao frio, segundo Rafael Rocha, é mais uma lenda. Conforme ele, a bebida é de alta qualidade porque os russos entendem muito de batata – a matéria-prima da vodca.
“O único alimento que resiste ao clima frio da Rússia é a batata. Por isso, eles se aprofundaram em lapidar as técnicas de fermentação e formas de fazer. Está na veia da alimentação desde sempre.” Tanto é verdade que lá, batata é fartura. Onde puderem criar pratos com esse alimento, lá estará ele. Tem até pastel com recheio de batata. Outro prato típico que surpreende é o estrogonofe. Sim, o original é de lá.
Brasileiro acostumado com ano novo na praia sofre quando essa data tão especial é celebrada dentro de casa. Pois na virada de 2015 para 2016, Rafael Rocha “ignorou” as tradições russas de permanecer na frente da TV e não se importou com os 30 graus negativos (sensação de 38 graus negativos). “Eu e um amigo fomos à Praça Vermelha em Moscou. Um showzinho foi preparado para os estrangeiros, já que os russos não fazem isso. Foi uma boa experiência, apesar da pele anestesiada”, brinca.
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Um pouco do bairrismo presente entre os russos de Kursk pode ser traduzido nesta foto. A imagem foi registrada pelo amigo de Rocha e também brasileiro, Renato Monturil, durante a tradicional passeata de 9 de maio. O Dia da Vitória e também feriado nacional faz referência à rendição dos nazistas, que significou o fim oficial da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
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“Eu participei dessa passeata e é uma loucura. Todo mundo sai para a rua festejar como se naquele dia, de fato, estivesse sendo celebrado o fim da segunda guerra. É uma energia muito forte.” Pelas ruas de Kursk, aliás, a cultura bélica é exaltada. Isso se deve ao fato de a cidade ter sido cenário da segunda derrota de Hitler, depois de Stalingrado. “Estátuas e tanques estão expostos em muitos espaços. A história é muito viva.”
A chama da vitória ou chama eterna é outra marca que lembra as cicatrizes da guerra. Reza a lenda que o fogo foi colhido dos destroços da Segunda Guerra e se mantém aceso até hoje em inúmeros parques da cidade e do País.
Ainda que o sistema de ensino na universidade de Kursk seja extremamente rígido – faltas e atrasos não são tolerados –, Rafael Rocha sabe que está vivendo um momento mágico. Certa vez, um professor incentivou a reflexão. “Quando, novamente, vamos estar aprendendo ao lado de pelo menos cinco nações diferentes?” E continua: “É muito mais que a medicina. É superação e muito crescimento.”
Se tudo der certo, Rafael concluirá a graduação dentro de um ano e meio. Até lá, mais esforços deverão ser desprendidos. De acordo com Rocha, a Rússia não nega o acesso à educação, mas quando se entra no sistema, a cobrança é bem rigorosa.
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