Quando li pela primeira vez A divina comédia, trilogia que percorre Inferno, Purgatório e Paraíso, não entendi várias coisas nos versos escritos em italiano arcaico por Dante Alighieri, mas fiquei profundamente impressionado com o relato poético do autor a respeito de sua musa e eterna inspiração, Beatrice Portinari.
Na vida real, Dante só a viu poucas vezes, em encontros casuais, e possivelmente nunca tenha falado com ela. Mesmo assim, ele a chamava de “mulher gloriosa”, e via nesse amor platônico uma força do bem, que remove qualquer intenção maligna e fazia dele uma pessoa melhor. Desde aquela época pensei que, se um dia eu tivesse uma filha, gostaria que se chamasse Beatrice.
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O escritor florentino reforça a tese de que o amor permanente só existe baseado na força divina, e sem essa sacralização tende a se tornar uma mera mistura de admiração, obsessão, desgosto, deslumbramento e desespero. Beatrice Portinari morreu cedo, aos 24 anos, mas seguiu sendo a eterna musa inspiradora deste que é o pai da língua italiana.
Em Florença, caminho com minha filha por uma viela estreita até a pequena igreja de Santa Margherita dei Cerchi, o local em que Beatrice Portinari rezava e onde foi sepultada, a poucos metros da casa de Dante. Dali seguimos de mãos dadas até a Basílica de Santa Cruz, onde, entre os túmulos de Galileu, Michelangelo, Rossini e Maquiavel, um belo monumento homenageia este que é o poeta maior da Itália. Na Divina comédia, Beatrice é elevada à condição de divindade, e a única descrição de seu rosto refere-se aos olhos de esmeralda. Sete séculos depois, olhos de esmeralda também podem descrever minha pequena Beatrice.
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Se eu tivesse que sugerir a alguém um único local no mundo para conhecer, não precisaria pensar nem por um segundo. Definir uma cidade como bela, interessante ou marcante é algo muito relativo e pessoal. Beleza e valor têm sempre a dimensão do sentimento que foi ali vivido. Destinos comuns podem se tornar um paraíso e paisagens espetaculares podem significar dor e sofrimento. Dito isso, na minha opinião, que é igualmente relativa e pessoal, Florença mereceria ser unanimidade.
Fundada por Julio César em 59 a.C., a cidade e seu entorno representam possivelmente o ápice da cultura artística atingida pela humanidade. O Renascimento, centrado em Florença entre 1450 e 1527, não foi somente um ressurgimento da cultura clássica de Roma e Grécia. Os renascentistas também criaram algo novo, mais humano e naturalista, em uma amálgama bem mais abrangente.
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Como uma tempestade perfeita, o período trouxe todas as influências culturais e políticas existentes na época a essa antiga república, que também já foi a capital do Reino da Itália, e hoje é a principal cidade da região da Toscana. Leonardo se beneficiou da cultura científica moura em seus tratados de ótica, engenharia e medicina, com óbvios paralelos com o conhecimento originário de Alexandria. As rotas abertas por Gengis Khan haviam trazido do oriente invenções chinesas, sabedoria indiana e arte persa. O destino dessas artérias de conhecimento e sabedoria convergiam na Europa, e, mais especificamente, na rica República Florentina dos séculos 15 e 16. Que outra cidade no mundo teve contemporâneos do peso de Da Vinci, Michelangelo, Maquiavel, Botticelli, Donatello e muitos outros?
Outro cidadão de Florença com quem de certa forma convivemos diariamente é Américo Vespúcio, que nasceu durante o mesmo período e foi colega de classe de Nicolau Maquiavel, o precursor do pensamento político moderno. Américo pisou pela primeira vez no Novo Continente cinco anos após a chegada de Cristóvão Colombo, e aportou também no Brasil pouco tempo depois de Cabral. Colombo era pouco letrado. Diz-se que saiu da Europa sem saber exatamente para onde estava indo e, ao chegar, não sabia bem onde estava. Américo, que por sua vez era culto, perspicaz e conectado aos poderosos bancos florentinos, produziu a primeira descrição efetiva do novo continente para os europeus. Por isso, as autoridades da época decidiram colocar seu nome nessa vasta região do planeta. A América, que talvez por direito deveria se chamar Colômbia, iniciou seu período pós-descobrimento eternizando o florentino por sua astúcia.
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É claro que todas essas realizações artísticas e políticas em uma pequena cidade da península itálica não seriam possíveis sem ter por trás uma forte concentração de dinheiro e poder: os banqueiros da família Medici.
(continua)
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