Desde aquele chutão de Roberto Bag-gio sobre a meta de Taffarel, em 1994, me intrigo com a força catártica do futebol, inclusive, sobre mim mesmo. Aquele chute horrível, totalmente imprevisível para um ídolo da Seleção Italiana, transformou a tortura da decisão nos pênaltis em uma explosão irracional de alegria. No tabuleiro econômico das nações, o Brasil continuava um país de terceiro mundo, repleto de miséria e desigualdades. Mas ganhamos as ruas tomados por uma euforia incontrolável. Éramos tetracampeões.
Não sou psicólogo ou psiquiatra e posso estar redondamente enganado, mas creio que o futebol liberta as pulsões armazenadas no território inconsciente de nossas mentes, que Sigmund Freud convencionou chamar de id. O id é habitat mental das paixões irrestritas, da libido, da alegria desmedida e irracional. Ele não dá a mínima para regras sociais, tampouco se intimida diante do que representa um perigo à sobrevivência. Fosse pelo id, o sapiens possivelmente já teria sido extinto em meio a uma busca incontrolável por atender às pulsões do êxtase. Mas sobrevivemos, por mérito dos departamentos de nossa mente que operam como regradores de nossas ações, os quais Freud batizou de ego e superego.
O superego é como aquele anjinho de auréola que, nos desenhos animados, senta no ombro de quem está prestes a fazer uma maldade, para recordá-lo que tal ação é imoral, antiética ou pecaminosa. Em nossa mente, esse rigoroso anjo nasce a partir do que aprendemos sobre certo e errado com nossos pais, professores ou, se for o caso, orientadores religiosos. Já o ego, coitado, é como um negociador que fica no fogo cruzado entre o anjinho do superego e esse capetinha que é o id. Sua grande preocupação e colocar freio às doideiras do id, para garantir nossa sobrevivência. Não raras vezes, o ego propõe um meio-termo para satisfazer os outros dois, tipo:
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– Ok, não podemos simplesmente pegar para nós aquela bicicleta superlegal que alguém deixou escorada no poste, na beira da calçada… mas podemos comprar uma igual, quem sabe parcelando em 12 vezes no cartão…
Repito: não sou psiquiatra nem psicanalista e minhas leituras leigas de Freud podem estar assustadoramente equivocadas. Inclusive, se o amigo leitor for especialista no assunto e detectar falhas em minha interpretação, tem toda liberdade de enviar um e-mail ao endereço acima que ficarei feliz em me retratar – só peço que, nessa hipótese, não me achincalhe nas redes sociais.
Contudo, acredito que o grande mérito do futebol é possibilitar uma libertação controlada dos impulsos do maroto id. O futebol permite uma canalização das paixões que inflam no inconsciente, a ponto de quase explodir, para algo que, via de regra, é seguro. No futebol, o id é a louca explosão de alegria depois daquele gol, aos 47 minutos do segundo tempo, que garante a classificação do nosso time à fase seguinte de uma Libertadores ou de uma Copa do Brasil.
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Já o ego e o superego são o VAR.
O VAR é racional, é honesto e justo. Mas é também o que tirou a o poder catártico do gol.
– Gooool!!! Gol, gol, gol, goooolll!!!
– Calma aí, parceiro. Vamos esperar o resultado do VAR. Comemoramos depois.
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Mas então já perdeu a graça.
O VAR atrofiou o id. Por isso, gostaria de sugerir à Fifa um emprego mais pertinente desse dispositivo, principalmente agora, com o futebol também de quarentena. Sugiro a instalação do VAR lá em casa.
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Quem se criou com irmãos, ou tem mais de um filho, sabe que as brigas entre as crianças no ambiente doméstico, infelizmente, acontecem. E, se algum pai ainda discordava disso, deve ter mudado de ideia já nos primeiros dias de quarentena. Não que as casas com crianças sejam campos de guerra ou ringues de MMA, mas seguramente estão bem longe de serem mosteiros beneditinos.
Minha exígua e ainda ingênua experiência como pai de quatro filhos sugere que atritos eventuais (ou nem tão eventuais) entre as crianças são praticamente inevitáveis – salvo com emprego de cercas de arame farpado ou muros isolando os irmãos dentro de casa. As brigas, portanto, não são, necessariamente, reflexo de omissão por parte dos pais na educação dos filhos – a menos que a casa realmente converta-se em um campo de guerra ou ringue de MMA. Por mais que os pais busquem educar e controlar os impulsos das crianças, cumprindo seu papel como ministros do superego, volta e meia ocorrem atritos do tipo:
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– Mãeeee, paiiii… a Ágatha bateu em mim com a Barbie. Até caiu a cabeça da boneca.
– Mas a Yasmin me chamou de feia!
– Foi a Ágatha que começou, me chamando de bruxa.
– Mas a Yasmin tinha me chamado de bobona.
– Foi a Ágatha que começou, pegando a Barbie que eu tava brincando.
– Mas essa Barbie é minha. E agora ela está sem cabeça. A culpa é toda da Yasmin.
– Mas a Isadora disse que a boneca era dela e que eu podia brincar. Né Isa?
– Eu não falei nada. E quem foi a chata que arrancou a cabeça da minha Barbie?
E agora, arbitragem? Quem começou a confusão toda? Qual seria a punição mais adequada, cartão amarelo ou vermelho? E a quem aplicá-lo? O que colocar na súmula?
Bom seria ter câmeras para analisar, quadro a quadro, o transcorrer dos fatos. Por isso, o VAR viria bem a calhar lá em casa. É muito id para darmos conta sem o auxílio da tecnologia.
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