Localizado a cerca de 145 quilômetros de Santa Cruz do Sul, o município de Farroupilha tornou-se uma referência para produções cinematográficas. Cineastas de todo o Brasil usaram as paisagens e as estruturas históricas do berço da colonização italiana no Rio Grande do Sul como cenários de filmes e séries.
Um dos pontos mais requisitados é a popular Casa de Bona. Construída no século 19, na Linha 80, a estrutura, composta por dois pavimentos de madeira e um porão de pedra, preserva seus traços originais e atrai especialmente as produções de época, incluindo dramas e comédias. Em outubro de 2024, a propriedade voltou a ser o cenário de filmagens.
No entanto, o romance e o humor das outras gravações dão espaço ao horror e à insanidade de A Própria Carne, ambientado em 1870. Trata-se do primeiro longametragem do Jovem Nerd (nome artístico de Alexandre Ottoni, e também denominação do grupo por ele criado). Ele e seu parceiro Deive Pazos, o “Azaghal”, que são referência no cenário brasileiro, já se aventuraram em diferentes conteúdos, desde o famoso programa Nerdcast, além de jogos e livros.
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Eles produzem o filme em parceria com Ian SBF, criador do Porta dos Fundos, responsável por escrever o roteiro e pela direção. Em entrevista à Gazeta do Sul, Jovem Nerd e Ian explicam como o interior gaúcho transformou-se no cenário ideal para a produção.
Estrutura do Rio Grande do Sul contribuiu para criar ambientação aterrorizante
Para a primeira empreitada no cinema, Jovem Nerd e Azaghal reuniram-se com Ian SBF para produzir um filme de baixo orçamento, com uma equipe pequena e poucos atores, a ser de preferência gravado em apenas um local. A opção era por uma locação e não um estúdio, para dar veracidade e evidenciar a atmosfera sombria.
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Em A Própria Carne, a casa histórica torna-se um possível abrigo para três soldados desertores da Guerra do Paraguai, o mais violento conflito da América Latina. Na busca por um lugar para se esconderem, deparam-se com a morada, isolada em meio ao mato na fronteira entre Brasil e Argentina. Lá, entretanto, vão se deparar com segredos macabros mantidos no interior da residência por seus esquisitos habitantes (um fazendeiro e uma garota).
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E a esperança da fuga transforma-se em um pesadelo aterrorizante. Todos esses elementos foram encontrados na propriedade que abriga a Casa de Bona. Em entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, Jovem Nerd afirma que tanto o interior da casa quanto a paisagem, cercada por araucárias, funcionaram em alguma cena.
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A impressão, segundo ele, é de que a estrutura havia sido construída especialmente para o filme. “A casa se encaixou muito bem com o roteiro. Parece que ele foi escrito depois que estivemos lá.” O cenário inóspito, que fica a 14 quilômetros do centro de Farroupilha, ainda favoreceu a sensação de isolamento presente na trama.
Já os cômodos ajudam na claustrofobia e para um clima intimista, características essenciais em filmes de terror psicológico. As filmagens duraram três semanas, totalizando 15 diárias. Com o intuito de contribuir para a economia gaúcha, impactada pelas enchentes de maio do ano passado, a produção decidiu contratar profissionais do Estado.
Jovem Nerd, carioca da capital, que reside nos Estados Unidos e acompanhou a última semana de filmagem, escutou as experiências vivenciadas pelos gaúchos durante a catástrofe. “Eram pessoas que estavam ali contando histórias de que perderam a casa, que andaram duas horas com água até o peito”, relembra o produtor. Na sua avaliação, o trabalho dos gaúchos foi incrível.
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“Estão de parabéns. Tenho no meu coração que quero trabalhar sempre com essa galera”, afirma. O resultado poderá ser conferido nos cinemas no segundo semestre de 2025. A primeira prévia foi exibida ao público em dezembro. O breve trailer evidencia o tom tenebroso e revela os esquisitos moradores, que riem maliciosamente, e o trio de fugitivos.
Além de ser publicado no YouTube, o vídeo foi exibido durante a Comic Con Experience 2024 (CCXP24), em São Paulo. “Acabou a alegria. Agora é só o terror e o desespero”, afirmou Azaghal no auditório lotado com cerca de 3 mil pessoas. A depender da reação do público, as paisagens gaúchas devem provocar medo nas salas de cinema em 2025.
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Entrevista com Ian SBF, diretor e roteirista:
Gazeta do Sul – O fato de a trama de A Própria Carne ter como pano de fundo a Guerra do Paraguai chama muito a atenção. É comum o cinema fantástico explorar momentos históricos, o que já trouxe resultados muito marcantes. O que te levou a abordar o tema no filme?
Ian SBF – Considero que é um período historicamente muito bizarro da nossa história e não se fala tanto quanto deveria. Trata-se da guerra mais importante da América Latina. É uma doideira, morreram mais de 400 mil pessoas nessa guerra. Imagina, naquela época, era uma loucura. Foi um fato absurdamente marcante do Brasil que não foi explorado tanto quanto deveria. Nosso filme não é o primeiro a falar sobre o tema, mas a gente sempre espera que isso atraia as pessoas a dar uma pesquisada, entender um pouquinho melhor. Não é um filme sobre guerra, se passa durante ela, e a gente usa muitos elementos desse período, inclusive da guerra, e coisas que aconteceram. Acho que as pessoas vão poder buscar estudar um pouquinho mais sobre o período e o que aconteceu ali, e isso vai ser superlegal. Visualmente também é muito fascinante: três soldados desertores, andando pelo sul do país, até que encontram uma casa no meio do nada. Isso também é muito legal nessa imagem, e partiu um pouco desse pensamento, do vislumbre de três soldados em uma floresta bizarra, desertando. Acho que muito já partiu daí.
A ideia de os protagonistas serem soldados desertores é curiosa. Permite também explorar o efeito psicológico que a guerra causa, que é um outro tipo de terror que isso provoca. Especialmente em uma guerra violenta como essa…
Na verdade, é muito sobre isso. É sobre sobrevivência. Essa galera está em um momento da história onde tudo parece uma armadilha, e você não tem muito para onde fugir, tudo é muito opressivo. A gente tentou trazer muito isso para o filme. Eles tentam fugir de uma situação anterior à guerra, que já é terrível. Com isso, vão parar numa guerra que é ainda pior. Nisso eles vão fugir dessa guerra e se tornam desertores, e vão parar num outro lugar, que é pior ainda. Então, é essa fuga incessante e que leva eles a lugar nenhum, eles só vão parar em lugares piores. E tudo é terrível, tudo é um perigo para eles.
De que maneira o terror é explorado em A Própria Carne. Ele evidencia mais o sangue ou investe no horror subjetivo?
Com certeza tem sangue no filme, para esse filme faz muito sentido, bastante sangue até, mas acho que é muito mais sobre uma atmosfera. A gente brinca muito, mas usa muito a paranoia dos personagens; nós usamos o isolamento deles ali. Tem até um filme de que eu gosto, que serviu de referência, chamado Mortos de Fome (Ravenous), que se passa durante a Guerra Civil norte-americana e tem soldados canibais. É interessante, porque entra nesse aspecto da paranoia dos personagens, de eles estarem presos num lugar ermo, no meio da floresta. E tem o caso de A Bruxa [de Robert Eggers], que, por mais que tenha esses momentos, não é sobre isso. É mais sobre a construção da família naquele lugar, e da maluquice que começa a entrar na cabeça deles, e aí se torna outra coisa. Eu gosto que ele tem um clima, e isso é mais interessante do que a cabeça amassada com sangue. Acho legal quando a gente consegue criar uma atmosfera, criar um clima, um tom, de trazer suspense, junto com o terror e outros gêneros. O que eu mais gostava era de ver o elenco funcionando. Porque é um filme de basicamente cinco atores. Então, quando eu vi o elenco interagindo e fazendo as cenas, o clima do filme e aquela paranoia funcionam. No final das contas, eles são o elemento mais importante. Quem faz a trama funcionar realmente são eles. E depois vem todo o sangue, toda a maluquice, todos os efeitos para coroar isso. Mas eles são o foco.
Você se tornou conhecido por seu trabalho na comédia, em especial no Porta dos Fundos. E agora aventurou-se no terror. O que é mais desafiador, fazer uma pessoa rir ou ficar com medo?
Eu gosto muito de gênero no cinema no geral. É muito engraçado isso, porque eu fui para comédia, fui para o humor, mas quando estava na faculdade de cinema, não era o que eu queria fazer. Nunca me vi como comediante ou diretor de humor. Obviamente, tenho facilidade para isso. Acabou que quando a gente começa a ver o que pode fazer, ainda mais lá no começo da carreira, a gente pensa: pronto, consigo ir. E eu ia para comédia, ia para o humor. Não que eu não faça, vou adorar fazer outras coisas de comédia, mas esse nunca foi o meu foco. A grande diferença da comédia para o terror é o que se precisa resolver ali. Porque é tudo preparação para a piada. Então, parece que a gente está correndo sem métodos. Tudo tem que ser uma vitória ou uma derrota, a cada duas falas é meio que isso, esse é o desafio do humor. No terror, é a construção de um clima. É muito mais uma maratona. A gente tem que se preocupar mais com o macro, enquanto no humor estamos sempre preocupados com o micro. É óbvio que também na comédia, no humor, o todo tem que funcionar, e no terror os pequenos também têm que funcionar. Mas creio que essa é a grande inversão: a gente tem jeitos diferentes de lidar com um e com o outro, relativamente.
Quais foram os principais desafios de gravar em locações, no interior do Rio Grande do Sul?
Foi engraçado. Quando você faz o plano de filmagem, quando faz o plano de locação e não se encontra dentro de um estúdio, você normalmente tem um plano caso chova; a gente vai para dentro da casa, vai para algum lugar. E nesse filme era o contrário, queríamos tudo chuvoso, tudo nublado o tempo todo. Então, tínhamos um plano para quando fazia sol. Nos escondíamos na casa e filmávamos alguma coisa que não precisasse ser na externa. Então, o clima foi um desafio, porque a gente queria que o clima estivesse ruim, e nem sempre estava ruim, durante a filmagem. Foi um quebra-cabeças, a gente conseguia achar os piores dias para filmar, os dias chuvosos e os dias mais feios, só que era exatamente o que a gente queria.
O Rio Grande do Sul tem trabalhado para atrair mais produções cinematográficas. Em Santa Cruz do Sul, por exemplo, contamos com Film Commission, Polo Audiovisual e o Festival de Cinema. Tudo isso para trazer mais filmes para cá. Como você avalia esse movimento?
Eu nunca havia filmado, até então, fora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Não tinha ideia do que esperar. E foi incrível. Eu fiquei apaixonado pela equipe do Sul, por todo mundo, porque realmente eles foram incríveis. O processo foi incrível, e aí o resultado fica incrível por causa disso.
A importância do figurino
Para além do cenário e da ambientação, há outro elemento cinematográfico fundamental para envolver o espectador. Trata-se do figurino, peça-chave para contextualizar o período em que a trama se passa, além de contribuir para o enriquecimento dos personagens. Em muitos casos, acabam se tornando tão marcantes quanto aqueles que os vestem.
Conforme o Jovem Nerd, os uniformes dos três soldados desertores, assim como o estado deles, contribui para evidenciar o clima da narrativa. “Os soldados estão fugindo da guerra, desgastados. E eles estão chegando numa fazenda no meio do nada, e está todo mundo no limite. Então, o figurino pede para ser desgastado e velho”, destaca.
Na sua avaliação, certas produções pecam ao apresentar um figurino que falha em criar conexão com a narrativa. Porém, em A Própria Carne, considerou o trabalho excepcional, pois as peças de roupas utilizadas por Gabriel, Gustavo e Henrique (nomes dos três soldados), assim como as demais, estão fiéis à temática da obra e à atmosfera que Ian, o diretor, desejava transmitir.
A tarefa de criar o figurino de A Própria Carne ficou a cargo da cachoeirense Carol Scortegagna. Formada em Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), ela atuou como repórter na Gazeta do Sul, criando um caderno de moda. Durante a carreira como repórter, despertou nela o interesse pelo tema.
Com o passar do tempo, passou a compreender que não se tratava apenas de tecidos, mas de comunicar algo. Desde 2010, foi responsável por criar o figurino de personagens para mais de 30 produções cinematográficas. Entre elas, o longa-metragem InfiniMundo, de Diego Müller e Bruno Martins, filmado no interior de Santa Cruz do Sul e de Sinimbu.
Carol foi premiada pelo trabalho no Festival de Cinema de São Bernardo do Campo. Para a profissional, o figurino precisa dialogar com o roteiro e os setores criativos da produção, além de deixar o ator à vontade.
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A atuação, segundo ela, vem muito aliada ao que a pessoa que irá interpretar um personagem veste, aos objetos que ele utiliza e ao cenário. “É como uma pele que a gente dá para um ator que está nu. A gente dá uma pele nova para um personagem. O ator se desvencilha do que ele é para se vestir de um outro alguém, e o figurino é essencial nisso”, explica.
Processo de criação
Essa visão de Carol foi essencial no desenvolvimento do figurino de A Própria Carne. Segundo ela, os desafios foram muito além da tarefa de recriar com fidelidade as vestes do trio de soldados fugitivos e dos misteriosos habitantes da fazenda. Isso porque foi o primeiro projeto cinematográfico feito pela figurinista após as enchentes de maio do ano passado.
“Por se tratar de um filme onde tivemos 100% de figurinos confeccionados, ao ir para a rua encontramos um cenário de ausência das matérias-primas (tecidos naturais e lãs), pois as lojas perderam seus estoques. Tivemos que buscar fora, jogar com o tempo de correios e tudo mais”, afirma.
Para dar credibilidade aos uniformes, Carol, que já havia trabalhado em outras produções que se passam no século 19, debruçou- se sobre livros para saber mais acerca da indumentária. Utilizou, por exemplo, obras da artista plástica e historiadora Véra Beatriz Stedile Zattera, que aborda as vestes gaúchas.
Ainda buscou referências em obras de arte e pinturas feitas na época, incluindo “Batalha do Avaí”, na qual Pedro Américo retrata a violência da Guerra do Paraguai. “Busquei também muitas fotos e registros dessa época, o que trouxe preciosidades sobre as texturas e as misturas de fibras.”
Para a cachoeirense, a experiência de trabalhar no longa-metragem de terror foi maravilhosa por conta da equipe por trás do projeto. Ressaltou ainda a atuação do elenco. “Todos foram geniais em cena e fora dela. Não tem como dar errado: o filme vai ficar incrível”, garante.
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