Era mais um final de expediente para Carlos José Kolbe, naquele 14 de novembro de 2019, uma quinta-feira. Por volta das 19 horas, o frentista de 27 anos encerrou seu turno no posto de combustíveis onde trabalhava havia dois anos e quatro meses, na RSC-287, em Candelária. A vontade era de chegar logo em casa, na Rua Roberto Kochenborger, Bairro Princesa, e tomar o seu capuccino preparado no capricho pela mãe, Evani Kolbe.
A noite, no entanto, reservaria uma saída não programada. Às 19h30, o primo Dionatan dos Santos Oliveira, de 28 anos, mandou uma mensagem via WhatsApp convidando-o para dar uma volta. O objetivo era ir à casa da namorada de Dionatan, no Bairro Costa Norte, para jogar The Last of Us no Playstation 4. E assim foi, até próximo das 22 horas, quando Carlos José sugeriu ao primo e sua namorada que fossem dar uma volta na rua.
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Arrumaram-se e saíram no Volkswagen Golf prata de Dionatan, em direção ao Centro de Candelária. Estacionaram nas proximidades de uma distribuidora de bebidas, na Rua José Bonifácio, tradicional ponto de encontro de jovens. O objetivo era tomar uma cerveja e jogar conversa fora, antes de entrarem na Festa da Caneta Azul, em uma boate das proximidades.
Já por volta das 23h20, Carlos precisou ir ao banheiro. O único por perto era em um posto de gasolina, mas eram cobrados R$ 3,00 para acessar o recinto. Carlos preferiu então caminhar uns 50 metros do lugar onde os amigos e mais pessoas estavam, e urinar em uma calçada, em local com pouca iluminação. A sequência dessa história seria trágica. Minutos depois, o jovem de 27 anos foi atingido por um tiro disparado por um policial militar. Ainda naquela noite, teria início uma série de investigações para traçar quais foram as circunstâncias que levaram à morte de Carlos.
Em dois inquéritos que correram em paralelo, a Polícia Civil e a Brigada Militar concluíram que o PM agiu em legítima defesa, após uma reação agressiva do jovem, abordado por ato obsceno. Contudo, a família de Carlos não se conforma com o resultado e aposta em uma nova evidência para reabrir as investigações: o estojo da bala que atingiu a vítima.
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Uma sequência de tensão do início ao fim
Carlos José era o mais novo de três irmãos com o mesmo primeiro nome. O trio se completava com Carlos André, de 30 anos, e Carlos Alexandre, de 32. No entanto, seu maior colega de festas era o primo Dionatan dos Santos Oliveira. Na versão contada pelo rapaz de 28 anos, que estava presente na hora da confusão, os momentos que antecederam a morte do seu primo já haviam sido carregados de tensão.
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Conforme Oliveira, três policiais teriam abordado um outro grupo, que estava um pouco distante, após uma denúncia de perturbação do sossego. “Um deles chegou quebrando a caixa de som de uma guria, dizendo que o som estava alto demais. Logo depois que eles (os PMs) saíram dali, foi quando o Carlos José foi urinar.” Segundo Dionatan, a bordo da viatura, os três policiais – dois homens e uma mulher – teriam dado a volta na quadra, parado com o veículo no meio da rua, próximo de onde o jovem de 27 anos estava urinando, e ligado o giroflex.
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“Alguém comentou que a polícia tinha parado uma pessoa mais à frente. Logo lembrei que meu primo tinha ido para lá. Dito e feito, quando cheguei, dois policiais estavam brigando com ele”, disse Dionatan. De acordo com o rapaz de 28 anos, que saiu correndo até onde estava acontecendo a briga, a policial teria contido sua tentativa de auxiliar Carlos José. “Eu disse que queria separar eles. Que se os dois não estavam conseguindo segurar o guri, que então eu segurava, mas não queria que ele fosse preso. Ela então disse para eu me afastar e que os dois PMs conseguiam resolver.”
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Na versão de Dionatan dos Santos Oliveira, um PM que estava lutando com Carlos José, junto a um carro estacionado, levou um soco no nariz e o outro se afastou para o meio da rua, para chamar reforço. Dionatan achou que a briga havia terminado, porém, segundos depois, ouviu o disparo. “Eu gritei para o Carlos José parar. Quando ele conseguiu se desvencilhar, ficou de pé e saiu caminhando de costas, com as mãos levantadas. Nisso, o policial que tinha ficado brigando com o Carlos sacou a arma e deu um tiro nele.”
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“Fiquei sem chão”, diz a mãe de Carlos José
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Dionatan conta que, após o tiro, saiu em disparada na direção de Carlos José, que estava caído, de bruços, no chão da calçada. “Ele me falou: ‘Primo, levei um tiro, tô morrendo. Me ajuda, por favor’. Um dos brigadianos me disse pra sair dali, que ainda tinha 30 balas pra ele, antes de algemarem o Carlos. Depois disso, ficaram decidindo o que iriam fazer com ele, antes de o colocarem já sem vida na viatura e levarem ao hospital”, afirmou Oliveira.
Nesse meio-tempo, na casa de Carlos José, no Bairro Princesa, o irmão Carlos André jogava Playstation 2 na sala, enquanto a mãe, Evani, de 51 anos, e o pai, José Gilmar Kolbe, 52, estavam deitados na cama. Naquele momento, o irmão de Dionatan e também primo de Carlos José, Douglas Oliveira, de 29 anos, apareceu na porta. O rapaz mora na frente da casa dos primos e havia sido avisado pelo irmão sobre o incidente no Centro. “Ele entrou e me falou que o Carlos José tinha levado um tiro. Na hora avisei o pai e a mãe e fomos direto ao hospital”, disse Carlos André.
Emocionada, a mãe, que ficou em casa enquanto o filho e marido foram ao hospital, disse que jamais imaginaria tal desfecho. “Na minha cabeça, eu achava que fosse uma discussão qualquer. Meu filho me dizia que não era de briga, que só revidaria se avançassem contra ele, aí se defendia. Quando soube que ele tinha morrido, fiquei sem chão”, lembrou Evani Kolbe. A família também afirmou que Carlos José Kolbe não lutava artes marciais, como alegaram os policiais à época do ocorrido.
“Era só ter abordado, revistado e mandado andar. Era um rapaz de mão limpa, sem droga, sem passagem na polícia. Chegaram batendo sem precisar. Poderiam ter dado um tiro pra cima. Na última das hipóteses, na perna, mas não nas costas”, afirmou o pai. Segundo ele, uma testemunha diz que viu quando Carlos José foi urinar na calçada. No momento, uma moradora do outro lado da rua o teria xingado. “Essa mulher gritou que não era pra ele urinar ali, e nisso os policiais desceram e agiram na violência.”
Conforme comentário da mãe, um laudo analisado no inquérito teria apontado substâncias alcoólicas no sangue de Carlos José. “Meu filho sempre foi trabalhador, honrado e digno. Quem fez isso pra ele é que não é. Não se aborda uma pessoa desse jeito. Se essa pessoa não sabe honrar a farda da Brigada Militar, não pode sujar assim o nome dos outros brigadianos. Ele foi covarde, matou meu filho que era inocente”, disse Evani.
O corpo passou por necropsia no Posto Médico Legal de Santa Cruz, na manhã de 15 de novembro, antes de ser sepultado no Cemitério Municipal de Candelária.
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Segundo Brigada, jovem tomou a arma de PM
Responsável por elaborar um inquérito paralelo ao da Polícia Civil, a Brigada Militar (BM) também concluiu que o policial que atirou em Carlos José Kolbe agiu em legítima defesa. O comandante regional da BM, coronel Valmir José dos Reis, lamentou a morte da vítima, mas tratou de ressaltar o trabalho técnico realizado pelos órgãos de segurança na análise do caso. “Antes de qualquer coisa, nós lamentamos. Obviamente que, do ponto de vista da família, é inaceitável. Do nosso também. E o resultado da perda de uma vida sempre é desastroso, seja de um policial, seja de uma pessoa da sociedade em uma ocorrência”, disse.
“No exercício da nossa função, representantes da segurança pública que somos por lei, temos que juntar os fatos materiais que se apresentam em uma ocorrência, como fotos, testemunhas, ficha de serviço dos policiais e provas técnicas. Em cima disso, fornecer os elementos para a Justiça, sem pender para o organismo policial nem para o lado de uma parte da ocorrência”, complementou.
O comandante regional, que assinou a solução do inquérito pela BM, disse que foram levadas em consideração provas concretas e materiais. “Temos que lamentar sempre, mas temos que ser técnicos nesses momentos, ao produzir ao Ministério Público e à Justiça as provas que serão agora avaliadas. A nossa parte está feita com isenção, corroboradas por um instrumento feito por duas instituições, o que, por si só, já diz da lisura e profissionalismo apurado.”
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Conforme Valmir José dos Reis, no inquérito realizado pela Corregedoria Regional, ficou descrito que Carlos José Kolbe teria agredido os dois policiais durante a ocorrência. O rapaz teria derrubado um deles no chão e tirado a arma desse policial. E o outro, que havia tomado um soco no rosto e caiu sobre uma grade, teria agido em legítima defesa ao atirar contra o jovem. Diante disso, a ação do PM se enquadra nos excludentes de crime.
“É lamentável. Qual família vai aceitar uma situação dessas? Nós, enquanto órgãos de segurança, somos reféns de um processo formal e todos os elementos e provas deram circunstância a essa solução”, salientou o comandante da Brigada. “Temos que esquecer da emoção, ir aos fatos e juntar as provas materiais. É o que nos compete. Não podemos constatar uma coisa, nos emocionar e colocar outra. Temos que olhar as provas e a materialidade, respeitando inclusive o entendimento e a opinião de outras autoridades a quem será submetido esse inquérito.”
MP deve analisar inquérito no início de agosto
A família relata que uma corrente de prata de Carlos José, no valor de R$ 600,00, não teria sido encontrada. A roupa que o jovem estava usando quando foi alvejado também não foi entregue. “Não estamos acusando ninguém, mas como some uma roupa de uma pessoa assim, em caso de morte?”, perguntou a mãe, Evani.
Outro questionamento da família diz respeito às câmeras de vigilância. Segundo eles, pelo menos duas, localizadas em um estabelecimento e em uma residência das proximidades, poderiam mostrar o ocorrido. “Tinha uma câmera bem certinha que pegava, mas disseram que não estava funcionando”, comentou o irmão da vítima, Carlos André.
Em coletiva de imprensa em 24 de junho, o delegado Paulo César Schirrmann, da Polícia Civil, divulgou a conclusão do inquérito coordenado por ele. “Na circunstância em que o fato aconteceu e se apresentava no momento, com base no que foi apurado através de depoimentos e provas, o meu entendimento é de que o policial agiu em legítima defesa”, disse Schirrmann.
Segundo o delegado, o inquérito poderia ter sido encerrado antes, mas demorou em razão da pandemia. Foram ouvidas 13 testemunhas, além de analisadas as perícias técnicas na pistola utilizada pelo policial e o exame médico legal e clínico. A reportagem fez contato com o delegado nesta semana para comentar a opinião dos familiares de Kolbe, mas ele preferiu não se manifestar. “Acho que não cabe uma nova manifestação. Meu trabalho está encerrado, agora é esperar a decisão da justiça.”
Contatado, o promotor de Justiça de Candelária, Martin Albino Jora, revelou que ainda não recebeu os autos do inquérito policial devido à suspensão dos prazos em razão da pandemia. “Depois, mediante análise, poderão ser adotadas as medidas jurídicas. Se não houver alteração dos prazos, creio que essa análise deve começar no final de julho ou início de agosto”, disse Jora. O promotor poderá arquivar o inquérito, oferecer denúncia contra os policiais envolvidos ou requerer diligências investigativas complementares.
A CÁPSULA
A família de Carlos José Kolbe guarda o que considera uma prova a ser considerada no caso, mas que não aparece nos inquéritos policiais. Trata-se do estojo da bala da pistola ponto 40 de onde partiu o disparo. Ejetada pela arma, a cápsula deflagrada foi recolhida na cena do crime por populares. A ideia é que o objeto seja alvo de perícia futuramente. “Vamos esperar o promotor de Candelária analisar se processa os policiais por homicídio qualificado, dada a impossibilidade de defesa da vítima, ou se acata a decisão do delegado, de legítima defesa, não processando os PMs e mandando arquivar. Nesse caso, a defesa vai ingressar com recurso, onde entraria um pedido de perícia na cápsula”, revelou Cleber Prado, o advogado da família Kolbe.
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