Mesmo quem não está familiarizado com literatura deve ter ouvido, em algum momento, o termo “kafkiano”: sinônimo de coisa absurda, ilógica e opressiva. Remete ao escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), autor de A metamorfose e O processo, livros em que pessoas comuns são subjugadas por situações bizarras e inexplicáveis, muito além de seu controle. No primeiro, um homem acorda transformado em enorme inseto; no outro, o protagonista tenta se defender de acusações graves que ele não conhece – e que ninguém vai lhe revelar.
Mas onde Kafka teria se inspirado para criar suas estranhas ficções? Em 1980, o escritor argentino Ricardo Piglia lançou uma hipótese curiosa no romance Respiração artificial. Pela voz de um dos personagens, Piglia expõe a teoria de que o jovem Franz Kafka teria conhecido em Praga (Tchecoslováquia), no final da década de 1910, um pintor frustrado chamado Adolf Hitler.
Os dois teriam frequentado o mesmo bar e conversado muito – o judeu Kafka escutando mais do que falando. Assim, de tanto ouvir os discursos e fantasias onipotentes do austríaco que se tornaria líder do Terceiro Reich, ele passou a imaginar seu universo de colônias penais, processos labirínticos, condenações marcadas na pele e humanidade aviltada.
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Não há registro de que os dois tenham se encontrado. Mas a tese faria sentido? Sabe-se que a palavra alemã “ungeziefer”, usada pelos nazistas para designar os presos nos campos de concentração, é a mesma que Kafka utilizou para dar nome ao que Gregor Samsa se transforma em A metamorfose.
Muito antes de Respiração artificial, em plena Segunda Guerra, o filósofo Jean-Paul Sartre observou que O processo não deixa de retratar a insegurança dos judeus em um meio social hostil (como a Alemanha de Hitler). “Tal como o herói do romance, o judeu está enredado num longo processo; não conhece seus juízes e mal conhece seus advogados; não sabe do que o acusam, mas sabe que o consideram culpado”, escreveu.
Resumindo: Kafka faz em sua ficção, antes de Hitler, o que Hitler disse que iria fazer. Enquanto alguns riam ou ignoravam, Kafka entendeu que, se aquelas palavras podiam ser ditas com tanta energia, então podiam virar realidade. Porque as palavras não são inocentes. Como salienta Ricardo Piglia, elas “preparam o caminho, são precursoras dos atos por vir, as faíscas dos incêndios futuros”.
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