Após conversar com o primeiro paciente com o novo coronavírus confirmado em Santa Cruz do Sul, a Gazeta do Sul buscou contato com a supervisora médica da Atenção Básica do município, que o atendeu. Clauceane Venzke Zell é natural da Zona Sul do Estado. A profissional é formada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e iniciou sua trajetória naquela cidade, mas logo se encontraria com o Vale do Rio Pardo. Desde 2006 na região, ela demonstra preocupação constante em manter-se atualizada e atenta a acontecimentos do mundo. Em 2009, a médica também teve de lidar com outra crise, a da gripe A, experiência que aplica dia a dia ao liderar a sua equipe no Ambulatório de Campanha.
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ENTREVISTA
Clauceane Venzke Zell
41 anos, médica, supervisora da Atenção Básica de Santa Cruz do Sul
Gazeta do Sul – Já tinhas lidado com crises, epidemias, pandemias? Como tem sido essa experiência? Alguma preparação especial?
Clauceane Venzke Zell – Já atuava na rede municipal na época da gripe A (H1N1), em 2009. Fazia plantão no Centro Materno Infantil (Cemai). Desde que o problema na China começou a ser divulgado, iniciamos a preparação de nossos profissionais. Antes mesmo de o primeiro caso suspeito chegar ao Brasil, a Secretaria Municipal de Saúde já se preparava para enfrentar a pandemia. Estudamos a situação no mundo, a evolução do vírus, e capacitamos técnicos, enfermeiros, médicos e outros profissionais da área.
A experiência tem sido bem desafiadora. Além de inúmeras publicações científicas que recebemos todos os dias, nós lidamos com a incerteza por ser uma doença nova, que a gente não sabe exatamente como se apresenta, já que ela pode se manifestar de forma diferente em cada paciente.
Há sintomas clássicos, mas há sinais que variam bastante de uma pessoa para outra. É uma experiência muito desafiadora. Atuando como supervisora médica, também tenho, além do desafio pessoal, o desafio de trabalhar com gestão de pessoas.
Como Santa Cruz se preparou para lidar com esse vírus? Houve uma capacitação dos funcionários? Como você avalia a infraestrutura?
Temos feito capacitações. Cada dia com novo boletim, as informações são repassadas para colegas médicos da rede, enfermeiros, técnicos e outros profissionais da saúde para que todo mundo tente se inteirar do que de mais novo está saindo na literatura médica a respeito do vírus. Aqui em Santa Cruz já começamos a nos preparar muito antes de a Covid-19 chegar. Realizamos reuniões de planejamento, de como realmente atuar frente a essa pandemia. Santa Cruz fez um Plano de Contingenciamento para detalhar como enfrentar o novo coronavírus.
Na medida em que o vírus foi se aproximando, esse plano foi colocado em prática. Montamos o Ambulatório de Campanha, reorganizamos unidades de saúde para que também estejam prontas para atender pessoas com sintomas respiratórios, consultas eletivas foram suspensas temporariamente, pois entendemos que as pessoas não deveriam ficar circulando, principalmente em unidades de saúde onde poderia haver pacientes contaminados. Existiu um engajamento de todo mundo para enfrentar essa situação.
Eu, particularmente, busco estar atenta a todas as informações que temos disponíveis na literatura médica, em dados de médicos de lugares onde o vírus chegou antes. Tenho contato com colegas da faculdade que trabalham na Itália e nos Estados Unidos e, com isso, conseguimos trocar experiências de como lidar com o vírus.
Temos uma infraestrutura bem adequada em Santa Cruz. Estamos conseguindo tempo para nos preparar, caso ocorra um grande aumento de casos no município. O Ambulatório é um exemplo de local para internar pacientes, caso necessário.
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Como tem sido a rotina no ambulatório?
Ainda não tem movimento tão intenso. As pessoas que têm procurado apresentam sintomas gripais e estão com dúvidas se eles se encaixam em casos leves, moderados ou graves. Muitos pacientes necessitam de atestado para se afastarem de seus trabalhos, pois quem tem suspeita precisa se afastar das atividades para não contaminar outras pessoas.
O Ambulatório funciona 24 horas por dia. O horário de maior movimento é no fim da manhã, mas ainda conseguimos dar atendimento rápido. As pessoas costumam ir com queixas de dor de cabeça, tosse e coriza. Tivemos pacientes também que sofriam de crise de ansiedade, com medo de estar com sintoma ou doença relacionada ao coronavírus.
Sobre o paciente contaminado, você se recorda como foi o atendimento, como ele chegou ao ambulatório?
O paciente procurou atendimento no horário em que eu estava de plantão no Ambulatório de Campanha. Ele chegou com queixas de dor no corpo, mal-estar, febre, diarreia e dor abdominal. Nesse dia, ele não apresentava falta de ar, mas relatou um cansaço para respirar. Realizei todo o exame físico e não tinha nenhuma alteração. Havia apenas histórico de viagem
para outro estado brasileiro.
O paciente chegou ao ambulatório com a oxigenação no sangue adequada, não era uma situação grave. Fiz manejo dos sintomas e orientei isolamento, conforme o protocolo que recebemos do Ministério da Saúde, que fala em isolamento domiciliar para casos leves.
Esse paciente retornou ao Ambulatório depois de quatro dias, num sábado, quando outros dois médicos estavam de plantão. Eram mais novos no plantão, e eu estava lá para fazer o treinamento deles sobre o prontuário. Quando vi que era o mesmo paciente, ainda falei para os colegas: “Esse é o nosso primeiro paciente Covid”. Mas quando o atendi, quatro dias antes, não tinha critérios para realização de exames – que são para pacientes graves ou profissionais da saúde.
No sábado, ele já apresentava quantidade baixa de oxigênio no sangue e o encaminhamos ao Pronto-Atendimento do Hospital Santa Cruz devido a essa alteração. Foi avaliado no hospital novamente.
Na segunda-feira de manhã, solicitei à equipe que estava comigo no Ambulatório que entrasse em contato com o paciente e perguntasse como ele estava se sentindo. O paciente relatou estar mais cansado e com a respiração mais difícil. Orientei que retornasse ao Ambulatório para que pudéssemos fazer a coleta do exame. Desde o dia em que o atendi, já tinha a suspeita de ser Covid por ele ter entrado em contato com pessoas que na terça ainda eram suspeitas de coronavírus. Quando voltou no sábado, ele já tinha a confirmação daqueles casos com os quais entrou em contato. Só não fizemos o exame no primeiro atendimento porque ele não preenchia os critérios necessários.
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Como tem sido o acompanhamento desse paciente e da família?
Tenho acompanhado o paciente, ouvido a Vigilância Epidemiológica, acompanhado a evolução do caso dele. Também tenho contato regular com a sua família, que vai me contando como está evoluindo nesse quadro de Covid-19. Criou-se essa relação de confiança porque desde o início deixei bem claro ao paciente que tinha sinais de estar contaminado pelo coronavírus e, assim que possível, coletamos o exame dele. Hoje, está praticamente recuperado; persiste apenas com sintoma de tosse, mas bem menos do que no início do quadro.
Quais são as principais dúvidas dos cidadãos? Alguma recomendação?
As dúvidas são quanto aos sintomas. Quando está com coronavírus ou outro problema. Nós, médicos, não temos como ter certeza se um quadro se trata ou não de Covid-19 sem o resultado de um exame. As dúvidas também recaem em função de não termos testes para fazer em todos que apresentam sintomas. Então, acaba gerando uma angústia na população em geral, pois não conseguimos saber como realmente o vírus está circulando na nossa cidade.
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