Quando a colonização europeia, ainda com a predominância de alemães, estava a pleno vapor no Rio Grande do Sul e em outras regiões do Sul do Brasil, uma nova frente abriu-se para a ocupação de áreas pouco habitadas no Sudeste. Nesse caso, na área serrana do Espírito Santo. Em 1859, um primeiro grupo de imigrantes subia o Rio Santa Maria até o Porto do Cachoeiro, atual Santa Leopoldina. Nos anos seguintes, mais e mais colonos chegavam, num primeiro momento de origem pomerana.
Essa identificação ficou de tal forma evidente na cultura, nos hábitos e nos costumes, que, hoje, 165 anos depois da fixação daqueles pioneiros, municípios e cidades como Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins e Vila Pavão, além de outras áreas do Estado (e, claro, a própria Santa Leopoldina), estão entre as regiões brasileiras que mais fortemente cultuam uma identidade. Por lá fala-se pomerano (inclusive ensinado nas escolas), saboreia-se comidas típicas e vive-se uma… vida pomerana.
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Quem se aproxima de Santa Maria de Jetibá, na região serrana do Espírito Santo, a cerca de 80 quilômetros da capital, Vitória, é informado por placas ao longo da rodovia que está chegando à cidade mais pomerana do Estado (e, seguramente, uma das mais pomeranas do Brasil). Não que outras cidades capixabas, como Domingos Martins e Vila Pavão, também não preservem intensamente o legado de seus pioneiros, mas nas cercanias de Santa Maria de Jetibá efetivamente as marcas estarão muito salientes. Inclusive nas conversas, no comércio ou pelas ruas, pois boa parcela dos 41 mil habitantes ainda fala pomerano, ou ao menos o entende ou com ele tem familiaridade.
São os resquícios, fortes e referenciais, de um povo que deixou as terras de seus antepassados, no Norte da Europa, ao longo do litoral do Mar Báltico, para se aventurar numa travessia do oceano Atlântico e tentar a vida em uma nova região. A Pomerânia atualmente se situa no Norte da Polônia, além de um pequeno recorte localizado na divisa da Alemanha com a Polônia, no estado do Mecklenburg-vor-Pommern.
Além dos imigrantes que se fixaram no Espírito Santo, outros aportaram no Rio Grande do Sul (com destaque para São Lourenço do Sul, Agudo e Sinimbu) e em Santa Catarina (Pomerode, por exemplo). Mas é em solo capixaba, onde chegaram em Santa Leopoldina, em 1859, que hábitos, costumes e tradições são mais entusiasticamente celebrados.
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A partir da capital capixaba, Vitória, via Cariacica, subindo pela ES-080 e depois pela ES-264 rumo a Santa Maria de Jetibá, o visitante depara-se com a forte identidade alemã e pomerana, povos que ajudaram a formar o caldeirão étnico do Estado, ao lado de italianos, suíços, portugueses e africanos, entre outros. Em 2004, a Gazeta do Sul fez esse percurso para entrevistas e pesquisas dentro de um projeto alusivo aos 180 anos de imigração alemã. O conteúdo resultou no livro Terra de bravos, lançado pela Editora Gazeta.
Naquela oportunidade, além de conversar com lideranças e historiadores, a equipe visitou regiões rurais, nas quais, em pequenas propriedades familiares de perfil similar às do Vale do Rio Pardo e da área de colonização europeia do Rio Grande do Sul, o legado pomerano segue muito ativo. Em especial pelas ruas de Santa Maria de Jetibá e de Domingos Martins, cidades então visitadas, as conversas em pomerano são rotineiras, e os sobrenomes em placas no comércio e nos serviços remetem às famílias tradicionais.
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O primeiro grupo de pomeranos a chegar era formado por 27 famílias, num total de 117 pessoas, todos agricultores luteranos. Até 1860 vieram outros 46 colonos, e o fluxo se intensificou entre 1868 e 1874. Estima-se que 2.223 imigrantes pomeranos tenham se fixado no Espírito Santo.
Atualmente, seus descendentes manifestam um claro orgulho (ou ao menos a plena consciência) da importância de sua contribuição para o desenvolvimento dessa região, em especial na área serrana, que era quase devoluta. Ali, em pequenas áreas de terras, dedicaram-se a um cultivo que se mostrou muito eficiente. Envolve a produção de café, de banana e de outras frutas e hortaliças, que tornam o Espírito Santo grande fornecedor para o Brasil e o mundo.
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Na cultura e nas artes, o resgate de tradições pomeranas, como o famoso casamento (celebrado durante três dias, e com a noiva vestida de preto, remetendo ao folclore trazido do Norte da Europa), gera repercussão nas mídias. Se no século 19 os pomeranos deixaram sua terra para buscar uma nova vida, em pleno século 21 colocam as suas cidades no mapa.
A historiadora Cione Maria Raasch Manske evidencia no seu sobrenome “de casa” e no sobrenome de casada a dupla identificação pomerana. Aos 51 anos, nascida em fevereiro de 1973, em Itaguaçu, acima de Santa Maria de Jetibá e não muito longe de Laranja da Terra, e depois tendo se fixado em Colatina para, por fim, se estabelecer em Cariacica, na região metropolitana de Vitória, ela se graduou em História (ainda em Colatina).
Decidida a dar continuidade à formação, ingressou no mestrado em Ciências Sociais (Sociologia Política) pela Universidade Vila Velha, em parceria com a PUC-SP. Defendeu a dissertação em 2013, e o tema não poderia ser outro: a cultura pomerana. Investigou a educação e a religião enquanto representações na história e na identidade pomerana em Santa Maria de Jetibá. Seu trabalho virou livro em 2015, sob o título, mais genérico, de Pomeranos no Espírito Santo: história de fé, educação e identidade.
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No passo seguinte, no doutorado em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, defendido em 2022, voltou seu olhar a um outro elemento essencial na perpetuação do modo de ser e de cultivar hábitos comunitários: a venda pomerana como lugar sociopolítico, econômico e identitário. Se em outros espaços de interação social a inibição de comportamentos ocorre, na venda, no bolicho, captou Cione, o cidadão pomerano não tem constrangimento em se mostrar ou em se expressar como é, e na língua que é a sua, desde o ambiente doméstico.
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Justamente por isso, percebeu Cione, e o manifestou por telefone para a Gazeta do Sul, a venda acaba por ser um espaço de resistência, de preservação de um modo de ser e viver que remete aos primórdios no meio rural, na vida comunitária. Uma vez que sua tese de certo modo amplia a interpretação em torno das marcas contemporâneas dessa etnia em terras capixabas, Cione tem expectativa de que ela venha a ser lançada em forma de livro em breve.
Na obra que resultou de sua dissertação, ela enfatiza que a fertilidade do solo nos vales da região montanhosa na qual se fixaram os pioneiros, bem como a disponibilidade de água, contribuiu para que os pomeranos, um povo mais afeito à pesca (em especial do arenque) na Pomerânia natal, encontrasse no cultivo agrícola uma garantia de subsistência. Assim, com o seu trabalho, foram essenciais para que a agricultura capixaba se impusesse nos mercados com a qualidade de seus diversificados produtos.
Na atualidade, e ainda que seja um dos menores estados em termos de tamanho do seu território, o Espírito Santo projeta para o País e o mundo uma imagem de forte apelo turístico. Beneficia-se de seu litoral, com um porto estratégico para a chegada e o escoamento de produtos (entre eles o café e as frutas), e também das montanhas, situadas a não muito mais do que uma hora de carro da capital. A proximidade com o Rio de Janeiro e a vizinhança com Minas Gerais são outros fatores que beneficiam os capixabas em termos de aquecimento de seu mercado, tanto no turismo quanto na interação cultural.
A historiadora Cione Maria Raasch Manske percebe uma similaridade entre as decorrências da colonização pomerana no Espírito Santo e da que resultou na povoação com europeus no Rio Grande do Sul, e que começou a ocorrer em período anterior à registrada em solo capixaba. O aspecto que ela identifica é o do relativo isolamento dessas comunidades pioneiras formadas por imigrantes europeus.
No Rio Grande do Sul, e também em Santa Catarina e no Paraná, os colonos ocuparam terras devolutas, pouco habitadas e até, de certo modo, ameaçadas por diferentes meios, inclusive por uma sempre possível presença espanhola. Assim, colônias alemãs (e depois italianas) se formaram para incorporar essas regiões, afastadas em relação aos centros habitados na época. Essa distância até as cidades, se dificultava o acesso ou o escoamento da produção, também contribuiu para a manutenção ou a preservação de costumes.
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O mesmo se deu no Espírito Santo. Até a chegada dos pomeranos, na segunda metade do século 19, a área serrana, em direção à divisa com Minas Gerais, era praticamente desabitada. A principal razão disso é que os portugueses buscaram impedir ou dificultar, a partir do litoral, qualquer acesso não autorizado às áreas de extração de minérios e pedras preciosas em Minas. Assim, essas áreas capixabas haviam chegado à segunda metade do século 19 praticamente devolutas. Os pomeranos que ali se fixaram puderam, nas décadas seguintes, manter a sua identidade, só ameaçada no período das grandes guerras do século 20.
Ao longo das últimas décadas, o Espírito Santo registra um esforço crescente para a recuperação e a preservação da memória dos imigrantes pomeranos. Isso passa inclusive por um plano de reavivamento da língua pomerana junto às novas gerações. Ao menos cinco municípios atualmente têm projeto formal de ensino dessa língua para os alunos desde o ensino primário até o médio. Com isso, ela é fortalecida enquanto elemento cultural, e os adolescentes passam a perceber a importância e a pertinência de se comunicarem por essa via em família e na comunidade.
Uma das iniciativas dentro desse propósito veio do professor e pesquisador Ismael Tressmann, que se empenhou na organização do primeiro e único Dicionário Enciclopédico Pomerano Português. A primeira edição da obra foi de tal modo demandada que, hoje esgotado, o autor providenciou uma ampliação e atualização geral do conteúdo. Agora, uma nova edição está em vias de ser lançada, com informações de que se encontra em processo de editoração.
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Ao lado de Tressmann, uma série de pesquisadores, historiadores por formação ou mesmo diletantes tem se dedicado a investigar a presença pomerana no Estado. Um dos mais entusiásticos é o pastor Helmar Rölke, da Igreja Luterana, que atuou em Santa Maria de Jetibá e está radicado na região metropolitana.
Seu livro Raízes da imigração pomerana: história e cultura alemã no Estado do Espírito Santo, com sólidas 621 páginas, é considerado um estudo definitivo sobre o tema. Antes deste, já elaborara um volume fundamental para compreender as peculiaridades do povo pomerano. Descobrindo raízes. Aspectos geográficos, históricos e socioculturais da Pomerânia, de 1996, caracterizara os elementos que conformavam o modo de ser, viver e pensar do povo que chamava o litoral do Mar Báltico de seu lar.
Em termos de hábitos das famílias, uma obra coletiva liderada pela pesquisadora Simone Küster Gude salientou a culinária. Aromas e sabores da cozinha pomerana/Gerüch un Gesmäk fone Pomerisch Koiken é uma pérola que compartilha os mais apreciados pratos que os pomeranos preservam e guardam a sete chaves.
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