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Especial Contrabando: expedição explora o mercado ilegal de cigarros

Preocupação central do setor de tabaco atualmente, o comércio irregular de cigarros provoca prejuízos bilionários, é hoje um dos mais nocivos crimes de fronteira e começa a ser dominado pelas grandes facções do País. Os órgãos de repressão, como a Polícia Rodoviária Federal, conseguem conter apenas uma fração do fluxo ilegal. A Gazeta foi conhecer a situação de perto.

Se sobram motivos para a cadeia produtiva do tabaco se preocupar com o avanço do contrabando de cigarros no Brasil, também não faltam razões para essa ser uma preocupação de toda a sociedade. De um lado, o comércio irregular, livre de qualquer fiscalização, impõe uma concorrência desleal ao mercado regulado, sujeito a tributação pesada e altos custos de produção. De outro, a conversão do contrabando de uma prática inofensiva em crime organizado orquestrado por quadrilhas aparelhadas, tem reflexos diretos não só sobre a economia, já que implica em perdas de arrecadação com impostos, mas também à segurança e saúde públicas.

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Tanto os números relativos à apreensão de cigarros quanto os dados referentes à evasão fiscal decorrente do contrabando impressionam. Mais impressionante, porém, é saber que o volume de mercadorias que cai nas teias da repressão é apenas uma pequena fração do fluxo da ilegalidade, o que é admitido pelas autoridades. E os efeitos práticos desse descontrole são sentidos na pele: uma fábrica regular de cigarros no Brasil já foi fechada por não conseguir competir com o contrabando e as empresas de tabaco não escondem que poderiam investir mais não fossem os prejuízos impostos pelo mercado irregular.

Diante da gravidade da situação, a Gazeta do Sul decidiu trazer a discussão sobre o contrabando para o projeto Caminhos do Tabaco. Desde 2015, equipes de reportagem percorrem anualmente as principais regiões produtoras de tabaco do País para verificar in loco o andamento e as perspectivas para a safra, conhecer as inovações que são aplicadas nas propriedades e observar a importância econômica da cadeia. O giro mais recente foi feito em fevereiro pelos agricultores Giovane Weber, que é colunista da Gazeta, e Anderson Rebinski, do Paraná. O trabalho foi publicado no caderno Safra, no último dia 23.

A inédita segunda etapa da expedição, também realizada em fevereiro, foi voltada ao contrabando. O jornalista Pedro Garcia e o fotojornalista Bruno Pedry foram até duas das principais portas de entrada de cigarros paraguaios no território nacional – Foz do Iguaçu (PR) e Mundo Novo (MS). Em três dias de trabalho e 3,5 mil quilômetros rodados, acompanharam operações policiais, testemunharam apreensões em postos alfandegários e conversaram com agentes envolvidos na fiscalização para entender como o crime funciona e observar as suas repercussões.

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Foto: Pedro Garcia/Gazeta do Sul
Pedry fotografa o pátio de veículos da Receita em Foz

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Olheiros: a ousadia
que sustenta o contrabando

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Conhecida como Estrada Velha de Guarapuava, a vicinal que liga os municípios paranaenses de Santa Terezinha do Itaipu e Foz do Iguaçu parece um local tranquilo. O trecho de 21 quilômetros de chão batido, ladeado por pequenas propriedades, é semelhante a uma rodovia rural qualquer. De madrugada, o silêncio impera e quase não há movimento. O cenário bucólico, porém, esconde uma artéria de escoamento do crime organizado: a via é um dos principais corredores do contrabando de cigarros no País.

Diariamente, passam por ali veículos carregados de maços paraguaios, que entraram em território brasileiro à margem de qualquer fiscalização. Apoiados por uma logística complexa, que inclui entrepostos e redes de olheiros espalhados por zonas de interior, os contrabandistas conseguem driblar o limitado aparato de repressão e distribuir os cigarros para todos os cantos do Brasil, onde são facilmente encontrados em pequenos comércios de bairros.

Gazeta do Sul acompanhou policiais rodoviários em uma ronda na Estrada Velha, pouco depois da meia-noite de quarta-feira, 20 de fevereiro. Embora não fosse possível enxergar uma viva alma por ali, um agente já alertava: “Essa estrada é muito vigiada. Certamente há pessoas nos observando nesse momento”. Àquela altura, explicou ele, a presença da guarnição certamente já havia sido reportada aos contrabandistas, o que significa que dificilmente um veículo carregado passaria por ali nas horas seguintes. Para conseguir flagrar um carro, só com uma incursão mais discreta e planejada.

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Foto: Bruno Pedry
Cigarros irregulares apreendidos são destruídos pela Receita Federal de Foz do Iguaçu: volume retirado de circulação é uma pequena fração da ilegalidade

Os olheiros são um elo importante da cadeia criminosa que age na fronteira em nome do contrabando de cigarros. Recrutados pelas quadrilhas, monitoram os passos das forças de repressão e orientam os responsáveis pelo transporte das cargas. “Algumas dessas pessoas ficam em frente às casas de policiais. Por isso, em muitos casos os policiais nem residem no município onde atuam”, relata Leandro Húngaro, da Polícia Rodoviária Federal de Guaíra (PR). Um fiscal da Receita Federal que atua na Ponte Internacional da Amizade, em Foz, confirma o poderio dos grupos: “Às vezes eu não sei qual é a minha escala de trabalho, mas eles sempre sabem.”

“É igual gato e rato”

A ousadia dos contrabandistas, que driblam o cobertor curto da fiscalização, é um desafio diário para as forças policiais. Um policial rodoviário conta que, além dos olheiros e batedores, que despistam as frentes de repressão, alguns grupos utilizam até dispositivos de fumaça. Assim, quando um veículo carregado é identificado e começa a ser perseguido, o dispositivo é acionado para desorientar as guarnições. “Eles tocam a fumaça em cima da gente e, se o policial não conhece a pista, não consegue fazer mais nada”, relata.

As quadrilhas também utilizam entrepostos para armazenar as cargas, geralmente barracões ou sítios. “Tem cidades no interior do Paraná onde não se encontra mais barracões disponíveis para alugar. Onde tem, é uma fortuna. Isso é porque esses locais são todos usados pelo contrabando”, conta o chefe da PRF em Foz do Iguaçu, Luiz Antônio Gênova. No início de fevereiro, a PRF descobriu uma aldeia indígena que era usada como entreposto.

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Conforme os agentes, o roteiro usado pelos grupos para escoar as mercadorias vai sendo adaptado de acordo com a ação da polícia. “É igual gato e rato. Eles tentam um caminho, a gente vai lá e cerca. Daí eles abrem uma outra rota, começam a fazer algo diferente, e assim vai”, observa Húngaro.

NÚMEROS

US$ 29,8 milhões

foram apreendidos em cigarros contrabandeados apenas
pela Receita Federal de Foz do Iguaçu em 2018

37,2%

das apreensões registradas pela Receita de Foz do Iguaçu
em 2018 eram de cigarros

96,6 milhões

de maços contrabandeados foram destruídos pela
Receita Federal de Foz do Iguaçu em 2017 e 2018

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Trabalho na alfândega:
o alcance é limitado

Por volta das 15h30 de terça-feira, 19 de fevereiro, um fiscal da Receita Federal sinalizou ao motorista de uma van que retornava do Paraguai pela Ponte da Amizade para que encostasse. Era uma abordagem de rotina: os cinco jovens que estavam a bordo precisaram mostrar as compras que traziam de Ciudad del Este e os servidores examinaram o veículo com lanternas em busca de fundos falsos. Em poucos minutos, descobriu-se que um dos rapazes escondia com as pernas uma sacola com cigarros embaixo do assento.

Os quatro pacotes foram lacrados e recolhidos. O jovem, porém, teve apenas de se identificar e foi liberado em seguida. “Como é uma quantidade pequena, não tem o que fazer”, explicou o fiscal.

A Gazeta acompanhou o trabalho dos agentes da alfândega durante cerca de duas horas. Naquela tarde, a fiscalização sobre os veículos e pedestres que cruzavam a ponte ocorria em pelo menos seis frentes, com servidores da Receita e da Polícia Rodoviária Federal. A maioria das 15 baias, porém, estava vazia. Segundo um fiscal, esse aparato é superior ao que se vê normalmente no local. “Vocês vieram no dia errado. Normalmente isso aqui é um abandono”, admitiu.

A fiscalização é aleatória. Táxis e veículos maiores parecem ser abordados com mais frequência, mas os fiscais ouvidos dizem que não há um critério definido para selecionar os veículos que serão parados. “Cada fiscal tem o seu padrão”, explica um. Como o efetivo é limitado, enquanto um veículo é abordado, dezenas de outros passam pela baia sem se submeterem a qualquer controle.

Um estudo feito no ano passado pelo Centro Universitário Dinâmica das Cataratas (UDC) apontou que, diariamente, cerca de 38 mil carros passam pela ponte. Os fiscais estimam que menos de 3% desse fluxo seja fiscalizado, embora não seja um percentual oficial.

Foto: Bruno Pedry

Flagrante de uma apreensão de cigarros na Ponte da Amizade: mercadoria foi apreendida, mas responsável apenas informou dados e foi liberado em seguida

 

Nas rodovias, não é diferente. As forças policiais realizam operações e abordagens rotineiras, mas a esmagadora maioria dos veículos transita livremente. Em uma barreira montada naquela mesma noite na BR-277, na altura de Santa Terezinha do Itaipu, dois policiais rodoviários plantonistas abordaram motoristas durante cerca de uma hora. Embora mais de 60 veículos tenham cruzado o trecho, menos de dez foram parados e nada foi encontrado. “Quando o veículo tem o perfil que geralmente é usado em contrabando, paramos. Fazemos algumas perguntas padrão e se notamos algo estranho, vistoriamos o carro”, explica um dos agentes.

Pouca gente, penas brandas

Um dos problemas que favorecem a expansão do contrabando é a carência de efetivo nas forças de repressão. Responsável por uma extensão de nada menos que 4 mil quilômetros de estradas, a Polícia Rodoviária Federal do Paraná, por exemplo, conta atualmente com 300 servidores a menos do que seria o ideal. “O contrabando sempre existiu e não vai acabar. O que precisamos é reforçar os órgãos de segurança para diminuir”, disse o policial rodoviário Leandro Húngaro, de Guaíra (PR).

Outro fator determinante são as penas a que estão sujeitos os operadores do contrabando, que geralmente não passam de cinco anos. Como a sanção é branda, a disponibilidade de mão de obra é maior. “É muito mais fácil arranjar uma pessoa disposta a trazer uma carreta de cigarros do que alguém disposto a transportar fuzil ou maconha”, observa o auditor fiscal Benedito Pereira da Silva Júnior. O resultado é que a reincidência é muito grande. “Tem pessoas que chegam a ser pegas em flagrante três ou quatro vezes. Falta um efeito pedagógico na pena que é aplicada”, analisa o chefe da PRF em Foz do Iguaçu, Luiz Antônio Gênova.

A CARÊNCIA

815

é o número de servidores da PRF no Paraná

1.124

seria o contingente ideal

22 mil

é o deficit de servidores da Receita Federal no Brasil

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Do Paraguai ao comércio:
a logística do contrabando

 

1

A fabricação de cigarros no Paraguai é legalizada. O Brasil, porém, não importa regularmente cigarros desse país, o que significa que qualquer maço paraguaio que circula em território brasileiro entrou de forma ilegal. Além disso, a indústria cigarreira paraguaia é toda voltada à exportação: enquanto a demanda interna anual é por 2,5 bilhões de cigarros, a produção chega a 60 bilhões, e as fabricantes, que em sua maioria estão localizadas perto das regiões fronteiriças, já teriam capacidade instalada para produzir 80 bilhões.

2

O ingresso de cigarro contrabandeado no Brasil se dá por via fluvial ou terrestre. No segundo caso, hoje a principal porta de entrada é a fronteira seca com o Mato Grosso do Sul, onde o aparato de fiscalização é menos estruturado do que, por exemplo, em Foz do Iguaçu. Na maioria das vezes, carretas com grandes cargas de cigarros saem da região de Salto del Guairá, no Paraguai, e entram por Mundo Novo (MS). De lá, acessam a região de Guaíra (PR) através da Ponte Ayrton Senna para depois seguirem pela BR-272, em direção a São Paulo, ou pela BR-163, em direção ao Sul.

Foto: Bruno Pedry
Ponte Ayrton Senna é caminho para o cigarro contrabandeado

 

3

A maior parte do fluxo ilegal, porém, se dá pelo Lago de Itaipu, Rio Paraná ou por seus afluentes, como o Rio Piquiri. O transporte se dá em embarcações que carregam pequenos volumes. As cargas são recebidas em portos clandestinos e colocadas em carros de passeio que seguem, por meio de estradas vicinais, para entrepostos espalhados pelo interior – geralmente barracões ou propriedades rurais. Nesses lugares, é feita a consolidação: os caminhões são carregados e de lá partem para os grandes centros consumidores do País. Em alguns casos, o cigarro é misturado a uma carga lícita, enquanto em outros os veículos carregam apenas as mercadorias do contrabando.

4

Na maioria das vezes, os carros utilizados para transporte de cigarro contrabandeado são furtados ou roubados. Para que possam carregar a maior quantidade possível de mercadoria, os contrabandistas costumam retirar os bancos e até o forro. Um SUV, que é um dos modelos mais usados pelas quadrilhas hoje, é capaz de carregar de 40 a 50 caixas, o equivalente a 20 mil maços, com valor estimado em torno de R$ 100 mil.

Foto: Bruno Pedry

 

5

Para driblar os órgãos policiais, os contrabandistas se valem de uma logística sofisticada. Os comboios são escoltados por batedores, às vezes armados com fuzis, que informam aos motoristas se há presença de fiscalização nas rodovias. Os bandos também são apoiados por exércitos de olheiros – geralmente jovens, inclusive menores de idade – cuja função é vigiar os movimentos dos agentes da repressão. As placas dos veículos costumam ser trocadas ao longo do trajeto até o ponto de venda, que pode levar de dois a três dias desde o ingresso do produto no Brasil.

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Produto irregular já supera
o mercado legal

O fechamento da fábrica de cigarros da Souza Cruz em Cachoeirinha, em fevereiro de 2016, acendeu o alerta no setor de tabaco sobre os efeitos da expansão desenfreada do contrabando de cigarros. À época, a empresa atribuiu a decisão de interromper a operação na Região Metropolitana justamente às perdas decorrentes do avanço do mercado irregular. E não é por menos: um estudo do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) apontou que, em 2018, mais da metade dos cigarros consumidos no Brasil tinham origem ilegal.

O contrabando respondeu no ano passado por nada menos que 54% do consumo – 50% corresponde a cigarros paraguaios e 4% a cigarros produzidos dentro do território brasileiro, em fábricas clandestinas. Segundo o estudo, que foi encomendado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco), a evasão fiscal gerada pelo comércio irregular chegou a R$ 11,5 bilhões e a arrecadação com cigarros registrada pela Receita Federal foi de R$ 11,4 bilhões. “Os cofres públicos estão perdendo somas maiores do que os valores arrecadados”, observa o presidente-executivo do Etco, Edson Vismona.

Foto: Bruno Pedry
Tabaco é extraído de cigarros contrabandeados no processo de destruição de maços na Receita Federal de Foz do Iguaçu

 

Além da questão tributária e das dificuldades enfrentadas pelo poder público para fazer a repressão, pesam fatores como a falta de diálogo entre os governos brasileiro e paraguaio sobre o assunto. Para o auditor fiscal Benedito Pereira da Silva Júnior, não se pode afirmar que o Paraguai é negligente em relação ao contrabando e é preciso respeitar a soberania de cada país para adotar a política industrial que julgar mais adequada. “O Paraguai tem o direito de fazer isso, está exercendo a sua soberania e tratando a indústria de cigarros da maneira que julga melhor”, lembrou.

O policial rodoviário Leandro Húngaro ressalta que o país vizinho vem dando sinais de mudança de atitude, com o aumento da carga tributária sobre o cigarro, o fechamento de portos clandestinos em seu território e a devolução de veículos roubados no Brasil que são apreendidos dentro dos seus limites. “Até então, o Paraguai vinha aceitando muito bem a situação do contrabando. Por isso que esse também é um trabalho político”, completou.

Para Silva Júnior, uma saída seria o governo apostar em campanhas de conscientização sobre os danos causados pelo contrabando à sociedade e, com isso, desestimular o consumo desses produtos. “Muitas vezes, o pequeno comerciante que vende nem sabe direito que se trata de um produto ilegal”, observa. Outro caminho possível seria um acordo internacional. Em maio do ano passado, o Brasil ratificou o Protocolo para Eliminar o Comércio Ilícito de Produtos de Tabaco. Já em outubro, na primeira reunião com os 44 países que aderiram, foram aprovadas algumas medidas, como a criação de um grupo de trabalho para estabelecer um sistema global de rastreamento do contrabando. (Com informações do Sinditabaco).

Um risco à saúde

Além dos prejuízos econômicos, o crescimento do contrabando também representa uma ameaça à saúde pública, já que, diferente dos cigarros regulados, os produtos de origem paraguaia não estão sujeitos a controle sanitário. Em 2015, pesquisadores da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) analisaram cigarros apreendidos pela Receita Federal e detectaram a presença de pelos de animais, terra, areia, restos de insetos, colônias de fungos e ácaros, além de metais pesados (chumbo, cádmio, níquel e cromo), todos cancerígenos, na sua composição.

O IMPACTO

54%

dos cigarros consumidos no Brasil em 2018 tinham origem ilegal

R$ 11,5 bilhões

é o que o poder público deixou de arrecadar em impostos por causa do contrabando

Preste atenção

Confira algumas marcas de cigarro contrabandeado encontradas no mercado e preste atenção ao consumir:

Foto: Bruno Pedry

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Facções criminosas
são atraídas ao contrabando

Não é novidade que o contrabando de cigarros deixou de ser um crime inofensivo. Há pelo menos uma década que os tradicionais “formiguinhas”, que traziam maços do Paraguai escondidos em meio a bugigangas em ônibus de comerciantes, deram lugar a quadrilhas aparelhadas, muito bem organizadas e que atuam em grande escala. Mais recente, porém, é a descoberta pelos órgãos de repressão de que a maior facção criminosa do Brasil, a paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), está por trás da operação.

Foto: Bruno Pedry
Policiais abordam carros na BR-277, no Paraná: risco de ações de repressão aumenta com a associação do contrabando ao tráfico de entorpecentes

 

O avanço do PCC sobre o contrabando tem, na visão das autoridades, duas explicações. A primeira é a combinação proporcionada por esse mercado de uma alta lucratividade com um risco relativamente baixo, já que as penas são bem mais brandas do que o tráfico de drogas. A segunda é o fato de, nas penitenciárias, via de regra dominadas pelas facções, o cigarro ser usado como moeda corrente. “Dinheiro não pode circular em presídio, mas cigarro pode. Então, dívidas de jogos e de consumo de drogas dos detentos são pagas em maços de cigarros”, observa o auditor fiscal Benedito Pereira da Silva Júnior.

O movimento do PCC confirma a tendência de aproximação do contrabando com o tráfico. Em busca da segurança e do lucro, quadrilhas especializadas em comercialização de drogas vêm se expandindo e, em alguns casos, até migrando para o mercado do cigarro, valendo-se da mesma expertise e, inclusive, da mesma mão de obra. “Às vezes, as pessoas que pegamos operando o contrabando já tiveram condenação por tráfico”, conta o chefe da PRF em Foz do Iguaçu, Luiz Antônio Gênova.

Foto: Bruno Pedry
Confrontos com trocas de tiros e perseguições que resultam em acidentes têm sido cada vez mais frequentes no combate ao comércio ilegal

O efeito disso é que o contrabando é operado com um grau cada vez mais elevado de violência. De acordo com o policial rodoviário Leandro Húngaro, da região de Guaíra (PR), confrontos com trocas de tiros e perseguições que resultam em acidentes graves têm sido cada vez mais comuns. “Somente nos primeiros sete meses de 2018, tivemos sete acidentes com viaturas durante perseguições a veículos que transportavam contrabando.”

Para Húngaro, esse grau de violência gera riscos altos não só para os agentes da repressão, mas para toda a sociedade. “Esse acompanhamento tático é muito arriscado. Você pode tanto acidentar uma viatura quanto um veículo desses em fuga pode ter uma colisão frontal com uma família que está usando a rodovia”, afirma.

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Entrevista: “Não adianta,
a briga é tributária”

Um dos líderes da repressão ao comércio irregular em uma das principais portas de entrada do crime no Brasil, o delegado da Polícia Federal de Foz do Iguaçu, Mozart Fuchs, é categórico: diferente do que sugere o senso comum, não é o fechamento das fronteiras ou o endurecimento das penas para os criminosos que vai conter o contrabando. A solução do problema, na sua visão, passa por uma revisão da política tributária vigente em relação aos cigarros.

Para Fuchs, a diferença de preço no mercado entre o cigarro regular e o paraguaio está no cerne da expansão da ilegalidade nos últimos anos. Segundo ele, não é equivocado afirmar que as estratégias adotadas pelo poder público, de preço mínimo e taxação agressiva sobre o cigarro, vêm apenas estimulando o consumo de produtos oriundos do contrabando, ao invés de frear o tabagismo.

A saída, defende o delegado, seria aliviar a tributação e oferecer um produto mais barato que possa competir com o paraguaio. Uma prova disso é o que aconteceu no mercado de eletrônicos: o ingresso de equipamentos de informática por meio de contrabando no País caiu significativamente nos últimos anos, como efeito da redução de alíquotas que derrubaram o preço desses produtos no Brasil. “A briga é de preço, não tem jeito”, concluiu.

A DIFERENÇA

82%

é a tributação sobre o cigarro no Brasil – 45% de IPI, 11% de Pis/Cofins e 26% de ICMS

40%

é a tributação sobre o cigarro no Paraguai – até o ano passado, era de apenas 16%

R$ 5,00

é o preço mínimo do cigarro no Brasil

R$ 4,00

é o preço médio do cigarro paraguaio no Brasil

Foto: Bruno Pedry

Mozart Fuchs
Delegado da Polícia Federal em Foz do Iguaçu (PR)

Gazeta – Durante muito tempo, o contrabando de cigarros foi considerado inofensivo. Hoje, é encarado como crime organizado e muito nocivo à sociedade. O que permitiu essa transformação?

Fuchs – Historicamente, todos os órgãos brasileiros de segurança pública deram ênfase muito grande para o combate ao tráfico de drogas e o contrabando de cigarros acabou ficando de lado. Atualmente, vemos o contrabando com mais nocividade do que o próprio tráfico. Existem agora várias organizações criminosas instaladas e, como estão bem estruturadas, temos dificuldade em combatê-las. Já sabemos que o PCC hoje está operando o contrabando. Além disso, muitas pessoas ainda não enxergam o contrabando como crime, mas sim como um trabalho. Já tive oportunidade de lavrar o auto de flagrante de pessoas que diziam “eu estou trabalhando e a polícia está me atrapalhando”. Outro problema é que as forças de repressão são muito mais suscetíveis à corrupção com relação ao cigarro do que com o tráfico.

Gazeta – Por que é tão difícil controlar o que entra no território brasileiro?

Fuchs – A nossa faixa de fronteira é muito propícia para o contrabando. Temos 16,8 mil quilômetros de fronteira seca. Fazemos fronteira com dez países, cada um com suas características. Os Estados Unidos também enfrentam um problema muito grande na fronteira com o México, no que diz respeito ao tráfico de pessoas e de drogas. E eles têm apenas 4 mil quilômetros de fronteira. Sem falar que o nosso País possui um grau de desenvolvimento muito inferior ao dos Estados Unidos. Talvez todo o efetivo da Polícia Federal hoje corresponda apenas ao border patrol americano, que trata somente da questão migratória.

Gazeta – Além da lucratividade, o que leva grupos criminosos a se expandirem do tráfico para o contrabando ou até migrarem de um para outro?

Fuchs – Por todas essas questões que eu mencionei, a logística acaba sendo muito mais fácil para o contrabandista de cigarros. Uma pessoa que é presa em flagrante transportando cigarros já sabe que vai ficar presa por poucos dias, um mês talvez. O traficante de drogas já não tem a mesma perspectiva. Existe uma probabilidade muito maior de o preso por tráfico colaborar com as investigações e delatar os demais integrantes do grupo criminoso para conseguir a liberdade, enquanto o contrabandista não precisa disso porque sabe que vai ficar pouco tempo preso. Normalmente os crimes são todos afiançáveis.

Gazeta – Nesse sentido, seria necessária uma alteração na legislação penal para conter o crime?

Fuchs – Não. Penso que o caminho mais adequado, como já se discutiu, seria criar um cigarro popular com uma carga tributária inferior para concorrer com a mercadoria do Paraguai. Não adianta, a briga é tributária. No Brasil, o maço é tributado em 80%. No Paraguai, até o ano passado, esse tributo era de 16%. O cigarro paraguaio é produzido com fumo brasileiro, portanto a questão da qualidade não é o aspecto mais correto para se atacar. O que o Brasil tem de enfrentar é a alta carga tributária que temos. Se você observasse há cinco ou oito anos os produtos apreendidos pela Receita Federal, veria uma grande quantidade de equipamentos de informática, como placas-mãe e monitores, porque a diferença de preço compensava trazer do Paraguai. Hoje não compensa mais, ficou mais atraente comprar no Brasil porque houve uma redução grande de impostos, tem garantia e é possível parcelar. Entre os itens contrabandeados, você praticamente só encontra produtos da Apple, como macbook e iphone, porque nesse caso a diferença de preço ainda é grande.

Gazeta – É possível dizer que a política que vem sendo adotada pelo governo federal para frear o tabagismo, de tributação pesada e preço mínimo sobre o cigarro, apenas estimula a migração dos consumidores para o cigarro contrabandeado?

Fuchs – Exatamente. A briga é de preço, não tem jeito. É claro que existem pessoas que gostam de ostentar uma marca de cigarro. Mas muitas pessoas não dão a mínima para isso, são simplesmente viciadas e qualquer marca que fumarem está valendo a pena. E não adianta querer encarcerar todo mundo, porque o Estado vai ter dificuldade para a manutenção dessas pessoas e vai desviar muito o nosso foco de atuação. Por isso eu digo que não há como resolver isso na questão criminal, apenas na questão tributária. Com a redução do consumo de marcas nacionais e o aumento no consumo de marcas estrangeiras, o recolhimento de tributos cai e, consequentemente, o investimento em saúde também. Mas os problemas de saúde se mantêm ou até aumentam.

Gazeta – Não é uma contradição que o Brasil exporte tabaco para o Paraguai e depois esse produto retorne como cigarro contrabandeado?

Fuchs – É um contrassenso, concordo. Mas não existe razão para o Brasil deixar de exportar. Até porque a exportação é legal, gera receitas para o Estado e empregos.

Gazeta – Quando alguém envolvido com o contrabando é pego, geralmente se trata de um transportador ou um comerciante. Mas quem realmente está por trás de todo o esquema criminoso, segundo as investigações?

Fuchs – É complicado. Por exemplo, o ex-presidente do Paraguai, Horacio Cartez, era produtor de cigarros. Pode-se dizer com tranquilidade que ele é um dos líderes. Produzir cigarro não é crime no Paraguai, mas a produção é toda voltada para a exportação. A forma como o cigarro sai do país não interessa para eles, e a maior parte sai pelo contrabando. E não é só para o Brasil, é para todos os países da América do Sul. Tive oportunidade de participar de um evento sobre contrabando e pirataria em Buenos Aires em 2016 e a reclamação de todos os países era a mesma. Só o Paraguai não sofre com isso, e o motivo é a tributação. Todo mundo tributa o cigarro, em média, em 90%, enquanto o Paraguai tributava em 16% até o ano passado. O limite do desvio é a lucratividade: enquanto a pessoa tiver lucratividade, ela vai continuar desviando.

Gazeta – Tivemos recentemente casos de fábricas clandestinas de cigarros descobertas no Brasil, além de situações em que marcas paraguaias eram falsificadas em território nacional. Seria essa uma nova tendência do crime para evitar a repressão nas fronteiras e rodovias?

Fuchs – Acho que não. Para isso, seria preciso uma expansão do parque de máquinas e seria muito difícil fazer isso sem conhecimento do poder público. Aqui em Foz, já apreendemos um equipamento de produção de cigarros que estava sendo transportado do Paraguai ao Brasil justamente para ser instalado em uma fábrica clandestina. Mas posso garantir que são fatos isolados.

Gazeta – Sabe-se que um dos motivos para a expansão do contrabando é a carência de efetivo nos órgãos de repressão. O senhor vê alguma perspectiva de melhora nesse aspecto?

Fuchs – Vai demorar muitos anos ainda para isso. Tivemos um concurso público em 2018 para suprir 500 vagas de todos os cargos. Para delegados da Polícia Federal, são 150 vagas. Só que aqui em Foz do Iguaçu, apenas em 2018, eu perdi cinco delegados. Isso que Foz é uma das fronteiras mais desenvolvidas do Brasil, tenho certeza que no Norte e Centro-Oeste a situação é muito pior. Então, esses 150 delegados que ingressarão talvez não consigam cobrir 20% ou 30% das vagas existentes. Além disso, se houver algum corte de benefício previdenciário, é muito provável que ocorra uma saída em massa do pessoal que está na ativa.

LEIA CADA REPORTAGEM DA EXPEDIÇÃO:

1 – Chegou a hora de se preocupar com o contrabando de cigarros
2 – Olheiros: a ousadia que sustenta o contrabando
3 – Trabalho na alfândega: o alcance é limitado
4 – Do Paraguai ao comércio: a logística do contrabando
5 – Produto irregular já supera o mercado legal
6 – Facções criminosas são atraídas ao contrabando
7 – Entrevista: “Não adianta, a briga é tributária”

Naiara Silveira

Jornalista formada pela Universidade de Santa Cruz do Sul em 2019, atuo no Portal Gaz desde 2016, tendo passado pelos cargos de estagiária, repórter e, mais recentemente, editora multimídia. Pós-graduada em Produção de Conteúdo e Análise de Mídias Digitais, tenho afinidade com criação de conteúdo para redes sociais, planejamento digital e copywriting. Além disso, tive a oportunidade de desenvolver habilidades nas mais diversas áreas ao longo da carreira, como produção de textos variados, locução, apresentação em vídeo (ao vivo e gravado), edição de imagens e vídeos, produção (bastidores), entre outras.

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Naiara Silveira

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