“Já que estamos aqui neste mundo, vamos fazer alguma coisa que preste, né?”, afirmou a bióloga Neuza Guerreiro de Carvalho, ao justificar sua participação no estudo publicado nessa sexta-feira, 4, na revista Nature Communications. Prestes a completar 92 anos com boa saúde mental e física, ela resolveu doar seu material genético para a pesquisa, que sequenciou o genoma de 1.171 pessoas acima dos 80 anos em São Paulo.
O objetivo do trabalho é formar o primeiro banco genômico dos idosos brasileiros – o maior da América Latina – e tentar compreender fatores genéticos ligados à longevidade saudável. Os primeiros resultados podem alterar o atual diagnóstico de algumas doenças de origem genética.
Entender os fatores que contribuem para a boa saúde dos muito idosos é um tema ao qual os geneticistas vêm se dedicando há anos. Grandes populações de centenários na Sardenha, na Itália, e em algumas ilhas do Japão, são estudadas há décadas para se tentar entender o peso da genética e o de hábitos saudáveis na longevidade. Mas e numa metrópole como São Paulo, onde muita gente não tem uma vida saudável e é submetida a estresse?
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“A vantagem de estudarmos o pessoal de São Paulo é que não se trata de população isolada, com alimentação muito saudável, que vive num ambiente pouco estressante”, resume a geneticista Mayana Zatz, do Centro de Estudos sobre o Genoma Humano e Células Tronco, da Universidade de São Paulo (USP), uma das autoras do trabalho. “Queríamos ver como é o genoma de quem resiste ao estresse de São Paulo, à toda a loucura dessa cidade, e chega aos cem anos com uma boa saúde física e mental. Queremos entender o segredo deles.”
A primeira conclusão importante dos pesquisadores revela que, na amostra brasileira, foram encontradas 78 milhões de variantes genéticas (que diferenciam uma pessoa da outra) – bem mais do que encontrado nos bancos atualmente disponíveis para pesquisa, cerca de 70 milhões. Isso não chega exatamente a ser uma surpresa, uma vez que o brasileiro é muito mais miscigenado e enriquece consideravelmente o banco de dados genéticos da população mundial.
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Os bancos genéticos atualmente disponíveis são formados basicamente por dados de europeus e asiáticos. Brasileiros, por sua vez, são descendentes de populações pouco representadas nessas amostras, como africanos e nativos americanos. Uma surpresa foi encontrar nos idosos brasileiros variantes genéticas classificadas pelos bancos internacionais como patogênicas que, no entanto, jamais causaram qualquer problema de saúde aos voluntários estudados na USP.
Quando buscam determinar o diagnóstico de uma doença genética, especialistas costumam tentar identificar no paciente o que chamam de “variantes genéticas de patogenicidade incerta” (VUS, na sigla em inglês), ou seja, trechos de DNA que não costumam ser vistos com frequência.
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“A pergunta que fazemos é: a variante encontrada é responsável pelo quadro clínico do paciente ou é apenas uma variante rara, mas não necessariamente patogênica?”, explicou Mayana Zatz. Se a variante aparece no genoma de idosos saudáveis, a tendência é concluir que ela não seria responsável pela doença. Entretanto, se não é achada entre os muito idosos, trata-se de um forte indício de que ela pode estar por trás de alguma doença letal, que impede parte da população de alcançar idades mais provectas. Ou, pelo menos, de que poderia se expressar de forma diferente de acordo com o perfil genético de cada indivíduo.
O levantamento brasileiro encontrou algumas variantes classificadas nos bancos internacionais como patogênicas (mutações associadas a doenças) em idosos saudáveis – uma indicação de que talvez a interpretação precise ser revista. “Encontramos, por exemplo, em uma idosa saudável, uma variante normalmente associada a casos graves de câncer de mama”, contou Mayana, lembrando que novos estudos ainda são necessários para se determinar se é apenas uma exceção que confirma a regra ou se novos parâmetros de diagnóstico terão que ser elaborados.
A voluntária do estudo Neuza Guerreiro Carvalho, que é bióloga e acompanha com entusiasmo o trabalho da equipe de Mayana, acredita que os estudos genéticos vão trazer respostas importantes. “Nunca tive os chamados vícios, em álcool e cigarro, porque nunca gostei mesmo, mas, fora isso, sempre tive uma vida normal”, conta Neuza. “Mas não acho que tenha sido isso que me fez chegar a essa idade. Acho que a explicação é mais genética mesmo. Por isso participo de vários estudos.”
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Pode ser. Mas vale registrar que a bióloga trabalhou durante trinta anos como professora e que, depois de se aposentar, fez nada menos que 50 cursos na Universidade Aberta da Terceira Idade na USP, sobre os mais variados temas, envolvendo artes, música, literatura. Ela participa de dois clubes de leitura e acabou de ler Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior.
“Gostei demais, o livro é muito bem escrito”, concluiu sobre a obra. “O bom autor é assim, te pega logo pelas primeiras frases; e o primeiro parágrafo dele é impecável.”
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