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ENTREVISTA: ‘Vacinas devem ser um bem comum global’, diz pesquisador

Apesar do consenso de que não há saída para a crise da Covid-19 que não passe pela imunização em massa, a escassez de doses ainda é um desafio para diversos países, inclusive o Brasil, o que mantém o número de infectados e mortos em alta e adia a recuperação econômica. Nesse contexto, uma discussão se impõe: diante de uma emergência global, farmacêuticas devem deter a propriedade de vacinas?

Atualmente, laboratórios como Moderna e Pfizer possuem o monopólio dos imunizantes aplicados no planeta, que só podem ser produzidos por eles ou por fabricantes autorizadas. Na comunidade científica, porém, muitas vozes vêm se levantando em defesa de licenças compulsórias, popularmente conhecidas como quebras de patentes, o que permitiria a qualquer outra fábrica produzir as vacinas mediante pagamento de royalties.

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Para isso, no entanto, é preciso que o Congresso Nacional aprove um projeto de lei, já em tramitação, que autoriza a quebra de patente – como ocorreu em 2007, com um medicamento para combater a infecção de HIV. Outro caminho foi proposto, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, pelos governos sul-africano e indiano: uma suspensão global temporária dos direitos de propriedade intelectual sobre insumos úteis contra a Covid-19 – ideia à qual, surpreendentemente, o governo brasileiro se opôs.

Um dos defensores árduos das licenças compulsórias é o pesquisador Pedro Villardi, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA). Em entrevista à Gazeta, ele atribuiu a falta de doses aos monopólios e afirmou que o Brasil teria condições de produzir mais vacinas, caso se abrisse essa possibilidade.

Colaboraram Maria Regina Eichenberg e Leandro Porto.

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ENTREVISTA

Pedro Villardi
Coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual da ABIA

Como funciona hoje a importação de tecnologias de vacinas?
O fato de termos imunizantes hoje é fruto de um grande esforço da comunidade científica internacional e um grande esforço financeiro dos estados. Dos quase 14 bilhões de dólares investidos para encontrar esses imunizantes, 75% foram recursos públicos ou filantrópicos. Então, nada mais justo do que pleitear que essas vacinas sejam um bem comum global.

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Mas essa não é a realidade que vemos. Existem algumas empresas, como Moderna, Pfizer e Janssen, que têm patentes sobre esses imunizantes e, com isso, conseguem controlar o mercado global. Então, a empresa tem o monopólio e, assim, consegue escolher algumas fábricas ao redor do mundo que vão produzir aquela vacina.

Em uma pandemia, todos os países, quase 8 bilhões de pessoas, precisam dos mesmos insumos ao mesmo tempo. O monopólio sobre esses insumos gera escassez. E isso é ruim para quem precisa, mas não para quem detém a patente, pois a empresa pode praticar o preço que desejar e ter lucros astronômicos.

No Brasil, a Fiocruz produz a vacina da Oxford/ AztraZeneca e o Butantan produz a vacina da Sinovac. Para que isso seja possível, então, houve um acordo das instituições com as farmacêuticas?
Exatamente. Houve um contrato que permitiu que essas fábricas produzissem essa vacinas em território nacional. Mas é importante dizer que esses contratos proíbem que Fiocruz e Butantan transfiram a tecnologia para outras fábricas brasileiras. Isso seria possível se tivéssemos a aprovação de leis que permitem a emissão de licenças compulsórias, não só para os imunizantes mas para outros insumos.

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O que defendemos é que essas licenças sejam para toda e qualquer tecnologia útil no combate à Covid. Existe um terrorismo ideológico em torno dessas licenças, falam que seria roubo, expropriação, desincentivo, mas é uma medida de defesa da vida. Temos que usar todo e qualquer dispositivo para aumentar a oferta de imunizantes no País.

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Essa liberação seria apenas para essas duas vacinas que já são produzidas no Brasil ou para outras também?
Defendemos o que está no projeto de lei 1.462, que tramita na Câmara dos Deputados. Nesse projeto não há uma lista de tecnologias, o texto fala em “insumos em saúde”. Então, abrange qualquer insumo útil no combate à Covid-19.

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Não seriam só as vacinas que já temos no Brasil, mas também outras, como as de RNA mensageiro, que é uma tecnologia muito interessante e não parece muito complexa. Já vimos notícias de que empresas que produzem a vacina contra febre aftosa, que ficam ociosas por alguns períodos, poderiam fazer uma conversão de suas plantas para produzir imunizantes no Brasil.

Então existe estrutura no Brasil para produzir mais vacinas, se houvesse a liberação?
Se há empresas que controlam o mercado e impedem outras empresas de tentar produzir esses imunizantes, ficamos de mãos atadas. Butantan e Fiocruz são instituições públicas de excelência e têm cumprido um papel magnífico, mas não podem ter o fardo de tirar o Brasil dessa pandemia. Isso precisa ser um esforço nacional muito mais amplo e que fica travado por conta dessas patentes.

É preciso, portanto, levar em consideração o contexto em que estamos, de calamidade pública.

É interessante trazer o debate para esses termos. Ouvimos argumentos como o de que a quebra de patente seria um desincentivo à inovação e prejudicaria as farmacêuticas. Mas, enquanto isso, as pessoas morrem. As grandes farmacêuticas não podem parar de ter lucro, mas as famílias podem ser despedaçadas? Temos que defender a vida em primeiro lugar.

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Existem precedentes de quebra de patentes como essa?
Isso já aconteceu centenas de vezes em outros países. No Brasil, aconteceu uma vez, em 2007, com o Efavirenz, um medicamento antirretroviral para combater a infecção pelo HIV. E foi um sucesso absoluto. Imediatamente após a emissão da licença compulsória, o Brasil conseguiu comprar uma versão genérica da Índia a um preço bem menor.

Cerca de dois anos depois, o Brasil internalizou a tecnologia e passou a produzir o Efavirenz nacionalmente. Os estudos mostram que, em cinco anos, o País conseguiu economizar, com apenas um medicamento, mais de 100 milhões de dólares. É um recurso que iria inteiramente para financiar um medicamento e pôde ser economizado pelo SUS e aplicado em outras áreas.

Qual é a posição do governo brasileiro em relação a isso?
Na Organização Mundial do Comércio, o Brasil tem tido uma postura absolutamente vergonhosa e incondizente com a tradição da nossa diplomacia em saúde. Vivemos uma tragédia em nível global e o Brasil, primeiro, não se posicionou, e depois se colocou ao lado de países ricos, contra a proposta de Índia e África do Sul de suspensão global temporária de direitos de propriedade intelectual, o que permitiria que todo e qualquer laboratório no mundo com capacidade produzisse vacinas.

Temos de colocar em perspectiva que, enquanto os Estados Unidos já vacinaram mais de 40% da sua população, o continente africano não conseguiu imunizar sequer 1%. Se mantivermos essa desigualdade na distribuição, vamos deixar parcelas da humanidade à mercê do vírus.

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