O escritor e professor mineiro Silviano Santiago, 84 anos, é um dos grandes decanos das letras brasileiras. Nascido no município de Formiga, em Minas Gerais, hoje com cerca de 70 mil habitantes, está radicado no Rio de Janeiro desde os anos 70, e antes esteve por uma longa temporada no exterior, entre a França, o Canadá e os Estados Unidos. Mais recentemente, Silviano tem se dedicado a uma série de romances que, embora classificados como ficção, apoiam-se em relatos autobiográficos de diferentes momentos de sua vida.
É o que promove no livro mais recente, Menino sem passado, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, num gênero que ele já havia testado no premiado Mil rosas roubadas, de 2014, e no igualmente aclamado Machado, de 2016. Nessa tripla abordagem agora reafirmada em Menino sem passado, Silviano alça-se à condição talvez do autor brasileiro com maior projeção nacional, um candidato natural do País à indicação ao Nobel de Literatura.
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E a obra de Santiago o avaliza ao longo de mais de seis décadas de publicação, numa ampliação gradativa de horizontes temáticos e num adensamento de seu olhar como crítico literário e ensaísta. De fases anteriores, romances como Em liberdade, de 1981, e Stella Manhattan, de 1985, já se firmaram no imaginário das gerações daquela época. Posteriormente, seus ensaios igualmente passaram a chamar a atenção, até o recente Genealogia da ferocidade, em que tematiza o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
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Mas é com as suas próprias memórias que Silviano mais tem lidado. E em Menino sem passado volta a um recorte dos seus anos de infância, entre 1936 e 1948. Sobre o novo livro, e sobre essa predisposição autobiográfica, o autor concedeu entrevista exclusiva ao Magazine, por e-mail, em troca de mensagens ao longo das últimas semanas.
ENTREVISTA
Silviano Santiago
Escritor
Magazine – Em “Menino sem passado”, o que motiva a volta no tempo? Silviano Santiago – Numa narrativa autobiográfica, o narrador assume a primeira pessoa e tem de operar um milagre. Tem de narrar sua vida singular como se nela houvesse, em potencial, uma dimensão plural. Tem de ser um indivíduo (ainda que seja um indivíduo sem importância coletiva) que se metamorfoseia em coletivo graças à sua reinvenção em linguagem. A autobiografia almeja ser o relato sobre X e sobre sua geração. No caso, a geração que nasceu e cresceu – no Brasil − durante a Segunda Grande Guerra e o Estado Novo. O milagre se torna quase impossível por o narrador viver numa localidade interiorana. Nossa geração – e já vê que acredito no milagre – descrê do passado que herdamos e acredita no poder de reinventar o mundo. Lembra Samuel Beckett: “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor”. Somos herdeiros de uma casca de banana, nosso alicerce. Nosso começo. Nela escorregamos de volta aos traumas do passado e tentamos sobreviver com vistas ao potencial de esperança que nos torna atuantes (há muito a utopia virou distopia). Na melhor das hipóteses, somos atores. O passado é menos uma lição de vida e apenas uma referência. As nascer, não recebemos testamento, a não ser que o holocausto e a bomba atômica sejam passíveis de ser itens dignos de cartório. Recebemos relíquias simbólicas. Elas estão sendo pouco a pouco postas abaixo tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Refiro-me às estátuas dos “heróis” do passado. Repare que Menino sem passado é uma história de família de onde foi subtraída a metáfora mais importante para compreender a tradição patriarcal. A árvore genealógica. Ela se transforma num vitral onde os corpos, as vidas humanas são seccionadas pelos perfis de chumbo.
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O livro se equilibra entre a ficção e a não ficção. Como isso ocorre?
Da ficção eu retirei um “modo” narrativo, cujos bons efeitos junto ao leitor são conhecidos. A ficção me fornece uma retórica forte para a narrativa de caráter autobiográfico ou memorialista. Oferece-me uma técnica narrativa. No entanto, ela para de repente de funcionar. Para no momento em que aparece o nome próprio do personagem. Quero dizer que, nos livros citados, o ser humano não é criado como se fosse um personagem de ficção, passível de ser caracterizado à vontade do romancista. Nos livros citados, o ser humano tem nome próprio e personalidade singular. Eis o nó górdio da autobiografia que aceita como alicerce a retórica da ficção. Não há por que ou como “inventar” um ser humano de carne e osso. O criador aproxima-se dele como se ele fosse um modelo em ateliê de pintura. Guarda na memória um modelo. A criação do “personagem” é tanto mais feliz quanto mais feliz for a aproximação do artista da personalidade do modelo. Às vezes, a foto pode funcionar como o noves fora. Tenho meus mestres. Guardo enorme admiração pelos “portraits” de responsabilidade de Paul Cézanne, Guignard ou Lucien Freud. Faço-me mais claro: de repente a narrativa como que entra em ponto-morto e “pinto” o vovô Amarante ou o Nhô Campeiro. Os perfis que desenho em palavras gostaria que fossem pinturas. Como o narrador, cada modelo é um indivíduo, mas acredito estar representando através deles uma coletividade.
Para o Silviano de hoje, que papel esse ato de reescrever-se tem?
Não só esse, mas todo e qualquer escrever – se se procura lhe dar um sentido subjetivo e existencial, abstraindo o lado estético – é parte duma infindável sessão de terapia. Não tenho a intenção de desaconselhar a terapia com especialista. Tento dizer que a própria experiência de vida (acentuada pela perda prematura da mãe) me constituiu como ser humano inclinado à interiorização dos sentimentos mais fortes e autodestrutivos, inclinado ainda a autorreflexão sobre o efeito deles e sobre seu papel na modelagem de minha personalidade. Tenho a impressão de que são os próprios fatos de vida que me dotaram para a literatura (ou de maneira geral para as artes). A escola, útil nas várias fases da formação, me foi necessária, mas não foi o alicerce de minha definição como artista e de meu gosto artístico. Penso muito numa frase do filósofo português Agostinho da Silva, que nos visitou nos anos 1950. Abriu sua conferência sobre poesia, dizendo: “Fernando Pessoa é dessas pessoas que nascem poeta”. Talvez seja por isso que eu possa conviver de maneira equilibrada com a criação literária e com o ensaio crítico. Antes de mais, são atividades vitais, que ganham força objetiva pelo aprendizado e se espalham, pelo trabalho diuturno, em palavras.
Como o senhor enfrentou o período de pandemia?
Moro no Rio desde 1974, quando regresso de meus estudos em Paris e de meu trabalho em universidades norte-americanas. Gosto de viver no Rio, ainda que, desde o início do ano passado, a própria cidade tenha perdido seus encantos e ganhado novas e trágicas misérias. Vivo confinado, a ver da janela da varanda do apartamento o que se passa. Há uma semana tomei a segunda dose da vacina (tenho 84 anos). Não me sinto preparado para voltar a caminhar pelas ruas. Noutro dia, ao ir à farmácia, tropecei num cano solto na calçada e fui ao chão. Tive de ir à emergência de hospital e dar uns pontos na testa. A solidão em si me incomoda pouco. Ela foi uma opção prazerosa no passado (leitura e escrita a requerem), hoje é uma necessidade. Prazer e necessidade comungam na mesma mesa em que ponho o café da manhã, o almoço e o jantar que preparo, e também na escrivaninha onde está o computador. Não poderia ter imaginado que, ao escolher uma epígrafe de Gaston Bachelard para o romance Stella Manhattan, estaria configurando minha vida atual: “A conquista do supérfluo proporciona uma excitação espiritual maior do que a conquista do necessário. O homem é uma criação do desejo e não da necessidade”.
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