O 3º Festival Santa Cruz de Cinema chegou ao seu final na noite de sexta-feira, 11, em um formato digital, por causa da pandemia, enaltecendo uma das mais conhecidas e respeitadas atrizes, que impôs a sua competência e a qualidade do seu trabalho nas telas e nos palcos. A carioca Léa Lucas Garcia de Aguiar, que os espectadores e fãs aprenderam a admirar pelo nome artístico de Léa Garcia, presença recorrente em novelas de TV que marcaram época e em filmes antológicos, foi a homenageada desta edição.
Aos 87 anos, ela é igualmente, como o Brasil e o mundo a reconhecem, uma grande dama a representar em alto grau a negritude brasileira nas telas, num tempo tão conturbado para as questões de cor e de raça. E ela já é expoente desde o momento em que foi indicada ao prêmio de melhor interpretação feminina no prestigioso Festival de Cannes, em 1959, por seu papel (de Serafina) em Orfeu Negro, que também arrebatou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960.
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Léa concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Sul, por telefone, na última quinta-feira, 10, à tarde, ocasião em que refletiu sobre o cenário deste absolutamente incomum 2020 em todos os setores, num esforço de prevenção ao coronavírus que transformou a quase totalidade dos eventos culturais, também os do cinema, de presenciais em virtuais. Léa estreou como atriz em 1950, por volta dos 17 anos, e desde então, ao longo de sete décadas, firmou seu nome no imaginário dos espectadores na televisão, no cinema e no teatro.
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Por essa época também conheceu o escritor, ator, ensaísta e dramaturgo paulista Abdias do Nascimento (1914-2011), com quem acabou por se casar, em relação que durou até 1958. Da TV, o rosto de Léa é muito familiar ao grande público por suas participações em novelas como Xica da Silva, Suave Veneno, O Clone, Êta Mundo Bom e Sol Nascente, entre dezenas de outros títulos, além da ampla filmografia que ostenta no cinema.
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Que lições a senhora entende que este ano deixa para todos nós?
É uma reflexão que acredito venha nos favorecer enquanto famílias, enquanto união e solidariedade. Agora, temos também essa reflexão política muito séria no Brasil. É um ano de várias reflexões, de várias ponderações, a que nós, como um todo, em sociedade, temos obrigação, digamos assim, de tirar conclusões determinadas, específicas também, em relação a tudo isso que está nos acometendo.
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Como a senhora enfrentou esse período. Como a agenda precisou ser adaptada e adequada?
Como vai ser adequado não sei, porque depende de cada trabalho que deveria ter feito. Em maio deveria ter feito a segunda fase do Arcanjo Renegado, uma séria da AfroReggae, e também um filme com o Daniel Filho, dois projetos adiados. Outros trabalhos me foram oferecidos, e até uma agenda para o dia 8 de dezembro, um filme que deveria ter acontecido, mas o próprio diretor e uma outra pessoa da equipe foram acometidos de Covid-19. Tive também na semana passada convite para mais um filme, mas acredito que nada poderá ser determinado enquanto não houver essa vacinação.
A senhora ficou em resguardo ao longo do ano?
Lógico que tenho de me precaver porque sou do grupo de risco, mas o problema me atingiu de outra forma. A pessoa que me ajuda há oito anos também é do grupo de risco e mora na periferia, num sítio, e ela não pode vir de trem e descer na Central do Brasil, tomar o metrô e vir até minha casa. Meu filho, que mora em Saquarema, até ficou uns dias comigo, mas teve de voltar porque tem família. Fiquei muito mais atarefada. A quarentena foi quebrada, tive de ir ao mercado, e há momentos que exigem nossa presença. De momento, mando trazer tudo em casa. Tem ocasiões em que fico um pouco aflita; até encontrei com as amigas, uma vez por mês, num bar, local bem aberto, com muito cuidado. Além de cuidar de mim, tenho dois cachorros, um gato, passarinho, tenho um jardim zoológico em casa, né? Então tenho que dar atenção a esses animais também.
E nesse contexto surgiu o convite para ser a homenageada do Festival Santa Cruz de Cinema…
Todos os convites e homenagens que recebo me deixam muito sensibilizada, porque é um reconhecimento ao meu trabalho e a minha trajetória artística. Em 2018 recebi nesse festival o prêmio de melhor atriz pelo curta Acúmulo, e isso também me comoveu. Não pude ir ao Sul, pois estava filmando em São Paulo. Para mim, os prêmios, as homenagens, me tocam bastante, porque, enquanto atriz, o que interessa realmente é esse reconhecimento; ser celebridade não faz parte da minha história, das atrizes mais antigas. Nós queremos o reconhecimento do nosso trabalho, isso é o que importa. E a homenagem do Festival Santa Cruz de Cinema tem essa conotação.
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Como é a relação da senhora com o RS?
Estive no Rio Grande do Sul num período maravilhoso da minha vida, quando fiz Piaf, com Bibi Ferreira. Foi uma temporada belíssima.Tenho recordações muito boas. A peça foi muito elogiada pela crítica, foi um marco na história do teatro brasileiro.
Como a senhora vê as questões de raça e cor?
O Brasil como um todo deveria ter uma consciência maior em relação a essa grande mazela dentro da sociedade, porque o que nós queremos, essa igualdade tão desejada, esse mundo tão igualitário com que sonhamos, jamais poderá acontecer enquanto houver preconceito, racismo, discriminação, intolerância contra o negro, o indígena, o nordestino. E a questão racial no Brasil não é como nos Estados Unidos. É diferente. Porque dentro da nossa sociedade existe uma negação com relação a essa questão. O brasileiro nasce acreditando que não existe racismo no país. E o racismo existe. O preconceito, a discriminação existem de modo muito específico: quanto mais acentuada a melanina, o preconceito se faz mais forte. O preconceito aqui no Brasil está muito em cima da pele, mas também continua mesmo à proporção que se vá embranquecendo, digamos assim. É um problema complexo, porque a gente precisa desmascarar, reivindicar e estar fazendo todo um trabalho de conscientização a uma sociedade que nega muitas vezes as suas origens.
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