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ENTREVISTA: o relato de uma psicóloga no Médicos Sem Fronteiras

A santa-mariense Débora da Silva Noal, de 39 anos, é psicóloga sanitarista formada na Unisc e desenvolve trabalhos que envolvem cuidados em saúde voltados a populações e trabalhadores que enfrentam desastres naturais (terremotos, furacões, deslizamentos de terra e inundações) e humanos (guerras, conflitos armados e étnicos, desnutrição severa, migrações e deslocamentos forçados).

Atuou em projetos nacionais e internacionais, no desenvolvimento e coordenação de estratégias de saúde mental coletiva, atendimentos clínicos individuais e em grupo com sobreviventes de desastres e populações que vivem em extrema vulnerabilidade.

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Sob risco permanente e péssimas condições de sobrevivência, como integrante da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras, desabafou em textos que deram origem ao livro O Humano do mundo – Diário de uma psicóloga sem fronteiras, lançado em 2018 pela editora Astral Cultural.

Atualmente, a pós-doutoranda trabalha ativamente no auxílio aos profissionais de saúde que combatem a pandemia da Covid-19 no Brasil, por meio da Fiocruz. Em meio às atividades, ela concedeu uma entrevista para a Gazeta do Sul. Confira abaixo.

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ENTREVISTA
Débora da Silva Noal, Psicóloga sanitarista

Gazeta do Sul – Que recordações guardas de Santa Cruz do Sul e do período na Unisc?
Débora – Lembro de Santa Cruz do Sul com muito carinho. É uma cidade especial para mim. Lembro da capacidade de acolhimento e do sentimento de pertencimento a uma comunidade. Passei seis anos da minha vida em Santa Cruz, durante o período universitário, e me senti acolhida. Foi um dos lugares onde mais aprendi o que é ser psicóloga e o que é produzir cuidado humano. E olha que foram seis anos de graduação na Unisc, dois anos de residência em Saúde Coletiva na Universidade Federal do Sergipe, dois anos de mestrado na Universidade de Brasília (UnB), quatro anos de doutorado também na UnB e ainda um ano em Montreal, no Canadá, em uma experiência acadêmica internacional na McGill University.

Uma das coisas que mais me marcaram na Unisc, e que sempre utilizo como exemplo, é o fato de ser uma universidade preocupada em produzir pesquisa, extensão e projetos voltados à comunidade. Não é uma universidade que pensa na pesquisa por si só. Sem um impacto social e sem saber o que a comunidade precisa, a pesquisa tem pouca valia.

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Essa é uma missão que carrego do meu período na Unisc. Produzir ações e conhecimentos para uma demanda da população. Minha comunidade cresceu um pouco porque trabalho com ajuda humanitária internacional, mas sigo a mesma premissa. Tento produzir cuidados e estratégias acadêmicas e científicas voltados para a necessidade das pessoas.

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Como surgiu a oportunidade de ingressar no Médicos Sem Fronteiras?
Em 2008, quando havia terminado a residência no Sergipe e estava contratada pela Secretaria Estadual de Saúde para supervisionar 28 municípios na região do Baixo São Francisco, conheci por acaso um coordenador médico da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF).

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O meu trabalho era de fazer articulação, para auxiliar pessoas em situação de vulnerabilidade e pessoas que tinham contato com a atenção básica, mas moravam em locais isolados. Ele tinha ido a Sergipe para encontrar minha chefe e contei um pouco do que eu fazia. Ele ficou impressionado e disse que a MSF precisava de alguém do meu perfil, com olhar estratégico para atuar na Guatemala e Honduras.

Eu não sabia nem o que era a MSF. Não era uma organização muito conhecida e não havia muita publicidade. Era grande somente fora do Brasil. Quando ele me explicou o que a MSF fazia, meu olho brilhou e eu disse na hora: “É isso o que eu quero fazer”. Costumo dizer que não foi um convite. Foi um encontro. Entrei para a organização e nunca mais consegui sair. Não consegui encontrar outro trabalho que me proporcionasse a sensação de plenitude. Faço atendimento direto ou elaboro estratégias de cuidado por meio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) da Organização das Nações Unidas (ONU) para as populações que sofreram desastres de grandes proporções, guerras, conflitos ou epidemias, como a que estamos vivendo atualmente.

Ainda atuo pela Organização Pan Americana da Saúde (Opas), braço da OMS nas Américas, ao produzir estratégias de intervenção para a saúde pública, e também na Organização Internacional do Trabalho (OIT), na formação de trabalhadores para o enfrentamento de desastres nos seus respectivos países, conforme a demanda. Enquanto isso, faço pós-doutorado em Saúde Mental e Desastres na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro e colaboro na Fiocruz de Brasília, com pesquisas e estratégias para intervenção na atenção psicossocial e saúde mental para a epidemia do novo coronavírus.

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Como foi escrever o livro O humano do mundo?
Não era bem para ser um livro. Nunca parei para escrever um livro. Na verdade, escrevia um diário. Então, o livro é a minha percepção diária das coisas que vivi. São momentos tensos, intensos, doloridos e sofridos. É o espaço que tenho para fazer uma autorreflexão. Como trabalho em lugares isolados, como Haiti, Sudão do Sul, República Democrática do Congo e Quirguistão, só para citar alguns, sem fácil comunicação e relacionamento social, às vezes fico por meses sem ter com quem conversar. Então, tenho esse mecanismo de escrever para enfrentar as situações de estresse.

Em 2011, recebi um convite para publicar e vendi os direitos autorais. Demorei mais de cinco anos para entregar. Não me sentia encorajada a entregar minhas fragilidades. No diário, não escrevemos o que dá certo. Escrevemos quando não sabemos mais o que fazer. Receios, dores, sofrimentos, penúria. O trabalho em locais que você não sabe a língua, não conhece a cultura, que corre riscos de morte. Escrevo quando estou com dificuldade de entender os próprios sentimentos.

Costumo dizer que o manuscrito foi a entrega de uma caixinha de vidro para o mundo. Fiquei com medo que quebrasse na mão das pessoas. Me surpreendi com o acolhimento e o impacto. O livro teve duas edições esgotadas e saiu em diversas plataformas. O que me marcou foi a capacidade de tocar as pessoas por meio da escrita.

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Agora, na pandemia do novo coronavírus, de que forma estás atuando e como enxergas as ações mundiais de contenção?
Estou trabalhando na Fiocruz em Brasília por meio de uma parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Cepedes/ENSP), vinculada à Fiocruz do Rio de Janeiro. A produção acadêmica é por meio de um grupo de doutorandos ou pós-doutorandos. Fizemos uma grande revisão do que foi produzido, cerca de 1,7 mil artigos, relacionados à Covid e também Sars, Mers e Ebola.

Para todos, a estrutura de contenção é semelhante. Por meio dessa sistemática, ouvimos profissionais da saúde para saber das dificuldades no enfrentamento da Covid-19. Com isso, conseguimos produzir 13 cartilhas publicadas pela Fiocruz para gestores e trabalhadores da saúde pública, principalmente quem está na linha de frente. A ideia é fazer o conhecimento científico transformar-se em algo que todos entendam e possam usar para ajudar a sociedade. A leitura deve ser similar para quem é da equipe de limpeza até o médico mais especializado. Tudo com embasamento científico. Produzimos vídeos e lives abertas como um espaço para sanar dúvidas. Já tivemos 20 mil de acessos no Conexão Fiocruz Brasília do YouTube.

Quais são teus próximos projetos? Tens planos de escrever mais livros?
Vou seguir nesse projeto por mais seis meses, no mínimo. Continuarei trabalhando de forma específica, com preparação de equipes que atuam no atendimento da Covid-19 e com produção de cuidado, com uma linha de atendimento online para as equipes de saúde. Temos mais de mil trabalhadores da saúde que pediram ajuda e estamos produzindo vídeos para orientá-los. Por enquanto, não tenho planos de publicar outro livro. Mas quem sabe me encorajo a publicar mais diários.

No primeiro livro há escritos de seis missões e tenho mais de 20 missões. Material não falta. As missões no combate da epidemia do Ebola na África foram tão doloridas que ainda não tive coragem de ler o que escrevi. Quem sabe um dia esse livro sai. Agora, meu tempo é hoje e o futuro, no máximo, é amanhã.

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