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ENTREVISTA: a história pelas cartas de Jango, no novo livro de Juremir Machado

Por meio século, correspondências que ajudam a cristalizar um olhar sobre um dos momentos cruciais da história do Brasil, e sobre um de seus personagens mais emblemáticos, o ex-presidente João Goulart, o Jango, gaúcho de São Borja, deposto em 1964, ficaram guardadas, em duas malas, longe do público. Jango faleceu em 1976, na Argentina, aos 57 anos. Assessor do presidente na época, Wamba Guimarães, também gaúcho, de Uruguaiana, as manteve em sigilo, em família.

Eis que agora os brasileiros finalmente têm acesso ao conteúdo desses documentos. Eles chegaram às mãos do jornalista e escritor Juremir Machado da Silva, 58 anos, ele de Santana do Livramento. E assim essas preciosidades históricas agora são detalhadas e apresentadas no livro A memória e o guardião, que acaba de ser lançado pela Civilização Brasileira, em 364 páginas, a R$ 59,90.

Não é a primeira vez que Juremir se ocupa de Jango. Muito pelo contrário. Pesquisou de forma exaustiva não só sobre o ex-presidente deposto como escrutinou o momento histórico, que levou à tomada de poder pelo Exército em 1965, inaugurando o regime militar, que seguiu até 1985. Em 2013, pela L&PM, ele havia lançado o ensaio Jango: a vida e a morte no exílio, já se ocupando da biografia do ex-presidente. Sobre o novo livro, que chega às livrarias e pode ser encomendado pela internet, bem como sobre as circunstâncias desse acesso a documentos tão valiosos, Juremir conversou ontem com o jornalista Leandro Porto, no programa Rede Social, da Rádio Gazeta FM 107,9.

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Além de atuar como colunista junto ao jornal Correio do Povo, Juremir é professor na Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS. Como ensaísta e escritor, assina ampla bibliografia, inclusive em narrativa de ficção, e também é tradutor. A decupagem da entrevista foi feita pelos jornalistas Lucimara Silva e Felipe Kroth, do Portal Gaz.

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Entrevista

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Como o senhor teve acesso a esse material tão rico?
Eu sou o tipo de historiador que tem paixão por documentos inéditos. Então eu tenho feito muitos livros em cima de documentação escavada. Encontrada sem ter sido usada antes. Neste caso foi a realização de um sonho total. Eram duas mil páginas, 997 itens entre cartas, relatórios e informes que foram guardados durante mais de 50 anos pelo assessor de gabinete do Jango, um gaúcho chamado Wamba Guimarães.

Quando Jango caiu, Wamba saiu com duas malas de cartas e ficou com esse material dentro do quarto dele por meio século. Ele morreu e o neto começou a procurar quem se interessasse pelo material. Então, finalmente, a Federação Unimed do Rio Grande do Sul comprou esse material e me repassou para que eu pudesse fazer o livro, porque eu que indiquei o material para eles.

Então me deparei com uma documentação interessantíssima sobre o funcionamento do governo, informes sobre conspirações, relatórios e, principalmente, e mais interessante, o que as pessoas de todas as dimensões pediam ao presidente da república, tanto que o título desse livro poderia ser “Todos pedem ao presidente”.

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São correspondências de um período muito próximo ao golpe?
São as correspondências de todo o período presidencial do Jango que vão de 1961 a 1964 e algumas, poucas, anteriores a 1961. Mas a maioria esmagadora é do período presidencial e são cartas desde anônimos pedindo ajuda porque estão desempregados ou porque precisam de dinheiro até figurões da política como JK, Tancredo Neves, pedem cargos para apadrinhados, pedem promoções… Tem general pedindo empréstimo da Caixa Econômica Federal pra compra da casa própria. Tem de tudo. Todos pedem alguma coisa ao presidente.

Qual a postura do Jango nesse período, com tão variados pedidos?
O Jango era um homem conciliador e operava dentro de um sistema que funcionava assim. Então, na tentativa de ampliar o arco de alianças, ele tentava atender a maioria dos pedidos, especialmente dos adversários. Era sempre uma possibilidade de fazer amigos e ter a dependência de alguém por ter feito um favor, ou, pelo menos, de praticar uma política de boa vizinhança.

É um período em que boa parte das regras, num jogo mais republicano, não estava ainda definida. Então a transferência de um contínuo do Banco do Brasil passava pelo Presidente da República. Tudo ia parar na mão dele. E ele despachava alguns desses documentos dizendo: “quero atender”, “tentem resolver esse problema”, “fale com fulano”. A tendência do Jango era de buscar uma solução favorável.

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A partir dessas correspondências e dos seus estudos, como se construiu essa retórica da ameaça comunista?
O Jango, como se sabe, foi muito influenciado, até para entrar em política, pelo Getúlio Vargas, e o Getúlio se ocupou muito de toda a legislação trabalhista urbana, mas ficou devendo em relação ao trabalho rural. O Jango, que também era fazendeiro, quando chegou ao poder, se deparou com essa situação em aberto. Então ele viu que, para desenvolver o país, em termos capitalistas, era preciso ampliar o mercado interno e, para isso, precisava dar condições à grande maioria da população de se tornar uma maioria consumidora.

Então, cercado de ministros muito competentes, como Celso Furtado, ele foi percebendo que não tinha saída, era preciso fazer reformas consistentes, que seriam chamadas de reformas de base. E isso tudo num contexto conhecido, que é o da Guerra Fria: a disputa entre o bloco comunista da União Soviética e o bloco capitalista dos Estados Unidos. Para complicar ainda mais, Cuba tinha passado do comunismo, e havia o temor que o Brasil se transformasse numa grande Cuba.

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Então se pressionava e atacava o governo Jango, insinuando que ele estaria marchando para o comunismo, porque estava defendendo as tais reformas, que eram de interesse dos grandes fazendeiros, que não queriam nenhum tipo de reforma porque estavam satisfeitos com aquela situação, embora isso não fosse inteligente, porque a desigualdade era tão grande que impedia o desenvolvimento interno do próprio país. Reformar significava incluir a população e torná-la capaz de beneficiar, por exemplo, a indústria nacional. Então, a retórica anticomunista foi uma retórica típica daquele tempo usada com eficácia, inclusive com apoio da própria máquina de propaganda norte-americana, para bloquear todo o governo progressista na América Latina, sempre considerado como populista e comunista.

E o papel dos militares neste golpe? Foram atores principais ou mais uma ferramenta desta vontade das forças políticas da elite?
Eu escrevi um outro livro que se chama 1964, Golpe Midiático Civil Militar. Em 64 houve uma aliança entre empresários de amplos setores, imprensa e os militares. Cada parte fez a sua aposta, achando que dado o golpe ela seria a principal beneficiada. De certa maneira, o empresariado achou que manipularia os militares.

Muitos políticos, como Carlos Lacerda, também acharam e a mídia fez o seu discurso padrão, moralizador, contra a corrupção e contra o comunismo, achando também que o golpe seria um tapa-buraco e rapidamente teria uma evolução para eleições. A ideia era tirar o Jango.

Só que os militares não tinham participado para devolver o poder rapidamente a quem quer que seja. O golpe era deles. Eles surpreenderam tirando do jogo muitos dos seus aliados e mostrando que ficariam com o poder pelo tempo que eles quisessem. Então, nesse joguinho de quem está controlando quem, os militares foram mais espertos do que todos.

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Olhando para a situação atual da política brasileira, há algum paralelo a traçar com aquela época?
Muitos paralelos possíveis. Por exemplo: na derrubada da presidente Dilma a imprensa contou muito com argumentos não muito diferentes daqueles que eram usados contra o Jango. Ele era considerado incompetente, desqualificado, era maltratado, era motivo de muita zombaria. Ele foi desconstruído pela imprensa da época, um pouco como a Dilma também foi.

Por outro lado, parece totalmente inverossímil que em 2018 e agora ainda, se use uma retórica anticomunista para justificar o que quer que seja. Em 1964 uma ameaça era verossímil, embora não fosse verdadeira. Hoje qual é a ameaça comunista? Quem são os comunistas? Onde eles estão? Mas o que se vê é que essa retórica ainda funciona, mudam algumas coisas, outras não.

Por exemplo, agora os golpes não precisam mais de tanques nas ruas, agora se pode chegar ao poder pela eleição com um discurso radicalizado, polarizado, e pode-se também usar algumas manobras dentro do judiciário para tirar um ou outro da corrida. Então, sim, algumas coisas mudam, mas é como se existisse um núcleo duro da história que é o mesmo. Que aquilo que se conta para assustar as crianças ainda é o bicho-papão e o bicho-papão continua sendo o comunismo.

Em meio a tanta possibilidade informação, como se multiplica tanto a desinformação?
Porque temos um instrumento novo, jamais existente antes, que é a tecnologia, as redes sociais que têm facilitado a disseminação, a produção, a distribuição de notícias falsas. Antes o sujeito ia ao bar, destilava o seu ódio contra esse ou contra aquele, mas não tinha poder de disseminação. E agora tem.

Então estamos aprendendo a lidar com isso. É preciso educar as pessoas para identificar uma notícia falsa, para conferir fontes, para não se deixar iludir facilmente e, mais do que isso, é preciso educar as pessoas para que elas não sejam perversas, desonestas. Muitas vezes o sujeito vê que é fake news, mas como serve a sua ideologia, ele dissemina.

Então ficou mais fácil hoje destruir a reputação das pessoas. Basta ver agora esses episódios envolvendo o Felipe Neto. Há toda uma operação para destruir a reputação dele. Só que ele parece ser muito forte, pela popularidade que tem, a visibilidade que tem. Ainda assim, se tentou colar nele um rótulo terrível que certamente vai continuar sendo disseminado por muitas pessoas ou, pelo menos, muitos vão continuar acreditando naquilo.

Então é uma época nova em termos tecnológicos e que exige uma nova postura de parte da população, para não se deixar enganar e também para não ser cúmplice de ilícitos.

O senhor acredita que se aplique o termo “pós-verdade” a este momento em que as pessoas compartilham informações com algum objetivo, mesmo que haja provas de que são informações falsas?
É como se a adesão ideológica funcionasse como uma crença, dogmática. Muitas vezes é difícil desmontar a falsa imagem criada. Então, depois que alguém passa a ser considerado ladrão, corrupto, pedófilo, fica difícil desmontar. Mas eu creio que estejamos evoluindo, porque, por um lado, a Justiça está se movimentando, a própria imprensa mais tradicional está ajudando a mostrar o que é falso e há toda uma população, enorme, conscientizada de que não combater a informação falsa traz um grande prejuízo para a sociedade, abala a democracia.

Creio que cada vez mais serão tomadas medidas para coibir. O sujeito não vai espalhar fake news impunemente. A partir do momento em que o sujeito pensar “não, se fizer isso vou para a cadeia”, creio que, aos poucos, vai mudar. Tudo isso é um processo longo, de conscientização, de regramento e, principalmente, de educação.

O novo livro já está disponível? E qual o diferencial dele com relação a outras publicações do senhor sobre temas semelhantes?
São livros complementares. Cada um tem a sua especificidade e, principalmente, cada um trabalha com documentos diferentes. Então, neste caso, é uma livro que trabalha com a correspondência endereçada ao Jango e com as respostas que ele deu. Então é um livro bem particular, porque permite enxergar o funcionamento da máquina do poder a partir do que as pessoas pedem ao presidente e de como ele responde.

Nestes tempos de pandemia acho que a única maneira, realmente, de encontrar os livros é na internet, em sites de livrarias, pelas quais se pode encomendar os livros.

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