Em tempo de fenecimento de ano e de um novo se delineando no horizonte, a memória se volta para outros crepúsculos e outros alvoreceres. Revivo minha infância – nela encontro a mão de meu pai me acordando delicadamente, para com ele contemplar estrelas, quando o relógio indicava a proximidade do novo ano. Céu da meia noite era sempre muito mágico.
Caminhávamos pelo jardim enquanto nossos olhares se voltavam para a miríade de estrelas no firmamento, e lhes enviávamos nossos desejos especiais para o novo ano que chegava. Quando alguma estrela cadente se apresentava em meio aos desejos formulados, era a certeza de que seria realizado. Até hoje amo contemplar estrelas, entregar-lhes meus desejos, meus sonhos, e espreitar alguma estrela cadente.
“Superstitios” são parte da cultura popular e vêm de tempos imemoriais – na crença em energias mágicas e na tentativa de entendimento do inexplicável. Em minha memória afloram alguns no umbral de um novo ano. Lembro que dedicávamos especial atenção aos alimentos consumidos durante estes dias.
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Carne de galinha não entrava no cardápio. A galinha cisca para trás, e isso implicaria num atraso na vida ao longo do novo ano. Em seu lugar a mesa apresentava pescados. Peixes nadam para frente, isto nos levaria a seguir na vida, mesmo que tivéssemos de nadar contra correntezas.
Guardo boas lembranças das diversas vezes em que ia com meu pai pescar lambaris em riachos na véspera de novo ano. Lembro dos lambaris fritos por minha mãe. Eram deliciosos. Na minha infância, os riachos eram límpidos e asseguravam um ambiente saudável para muitas vidas aquáticas.
No primeiro almoço do novo ano era a vez de assado de porco – Schweinebraten – feito no forno à lenha; das Schwein wühlt die Erde vorwärts – o porco revolve a terra com o focinho, sempre para frente. Precisávamos assegurar que tudo seguiria levado por nossos bons empenhos durante o novo ano.
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Antigos hábitos, repetidos de geração em geração, sedimentaram-se na mesa e na vida. Quando por esta época estou na Alemanha, amigos me presenteiam com porquinhos da sorte, feitos de Marzipan e trevos de quatro folhas – Glücksschwein und Glücksklee – para me desejarem sorte durante o novo ano. Aliás, a expressão Schweinhaben, significa ter sorte.
Ela tem sua origem na Idade Média. Em jogos, o perdedor recebia como prêmio de consolação um porquinho. Assim, o bacorinho passou a simbolizar sorte. Reavivar antiguíssimas crenças, ler textos voltados para o ano em fenecimento e o nascedouro do novo, igualmente me acompanham ao longo da vida.
Entre diversos textos, de meus poetas preferidos, lhes ofereço um excerto de Rainer Maria Rilke: “Und nun wollen wir glauben an ein langes Jahr, das uns gegeben ist, neu, unberührt, voll nie gewesener Dinge, voll nie getaner Arbeit, voll Aufgabe, Anspruch und Zumutung; und wollen sehen, dass wir es nehmen lernen, ohne allzuviel fallen zu lassen von dem, was es zu vergeben hat, an die, die Notwendiges, Ernstes und Grosses von ihm verlangen… Guten Neujahrsmorgen…”
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“Vamos confiar em um longo ano que nos é dado, novo, intocado, cheio de coisas nunca antes vivenciadas, cheio de trabalhos nunca antes realizados, cheio de desafios, exigências e demandas, que querem que aprendamos a aceitá-lo, sem abandonar muito daquilo que ele tem a ofertar aos que lhe pedem o indispensável, sério e grandioso… Bom dia em ano novo…” (Rainer Maria Rilke, 1875-1926, escritor e poeta austríaco).
Com este pensamento de Rilke, eu desejo a todos um abençoado novo ano! Que não nos faltem e nem descuidemos do essencial: saudáveis alimentos para o corpo, para o intelecto e para a alma.
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