Como a maioria das mulheres, que conciliam a rotina de trabalho com o cotidiano do cuidado dos filhos e da casa, as trabalhadoras rurais também acumulam jornadas triplas e exaustivas. Importantes para o desenvolvimento social e econômico, as mulheres assumiram ainda mais, nos últimos anos, o protagonismo em suas propriedades. Conforme o último censo agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de mulheres no comando de propriedades agropecuárias no Brasil era de 12,7% em 2006 e subiu para 18,7% em 2017, alcançando um total de 946 mil. Outras 817 mil declararam participar da administração dessas propriedades de forma compartilhada.
Entretanto, mesmo assumindo o fundamental papel, algumas ainda convivem com obstáculos como desvalorização, invisibilidade do trabalho feminino, violência e acesso desigual aos recursos produtivos e às políticas públicas. Fora que, além da jornada de trabalho e dos desafios a serem superados, muitas precisam conciliar o serviço com a função doméstica de cuidados com os filhos e com a família. Para lutar pela garantia de direitos, entidades como a Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS) trabalham diariamente pela igualdade.
Se o agricultor Selvino Frantz estivesse vivo para ver a esposa Edi Frantz, de 59 anos, e a filha Louvane Cristini Frantz, de 33, sentiria um misto de espanto e orgulho. Falecido aos 58 anos em 2015 devido a um câncer, ele deixou as duas no comando da propriedade de Linha Entrada São Martinho, no interior de Santa Cruz do Sul. Hoje, ambas tocam sozinhas as lavouras de tabaco e de milho, a horta e o cuidado de suínos, bovinos e frangos.
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Quando Selvino morreu, mãe e filha precisaram tomar uma série de decisões, como diminuir a área de plantio e se desfazer de alguns animais. “Era muita coisa, mas continuamos com praticamente tudo que plantávamos antes, só que um pouco mais reduzido. Ano passado plantamos 18 mil pés de tabaco e este ano estamos querendo plantar 16 mil. Mas cultivamos de tudo um pouco”, conta Louvane.
A jovem, que também integra a juventude do Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares de Santa Cruz do Sul, comenta, aos risos, que se o pai estivesse vivo, estaria assustado. “Ele acabava sempre ficando com o serviço mais pesado e agora fazemos tudo. Mas Deus não dá uma cruz maior do que a gente pode carregar. A principal dificuldade no começo foi com a lida dos animais. O pai não me deixava lidar com os bois, dirigir, nada. Daí foi um pouco difícil, mas agora é tranquilo”, relata. Para Edi, é preciso persistência. “Às vezes é difícil, mas tem que levantar a cabeça e trabalhar”, enfatiza.
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O último censo agropecuário, divulgado em 2019, mostra que o número de mulheres no comando de propriedades agropecuárias no Brasil era de 18,7% em 2017. Na visão da coordenadora estadual de mulheres trabalhadoras rurais da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), Maribel Moreira, este aumento remete ao empoderamento da mulher do campo. “Ela mesma se vê como uma trabalhadora rural e não apenas como ajudante ou alguém que só faz atividades domésticas. A partir do momento que uma mulher do campo se sente parte no processo de produção de alimentos e na geração de renda, ela começa a buscar meios para melhorar sua condição de trabalho”, observa.
A sucessão rural também é um fator que tem colaborado para a autonomia da mulher, principalmente as jovens, conforme Maribel. Essa sucessão, que é o ato de assumir a propriedade da família, é muitas vezes incentivada pela educação no campo voltada à pedagogia da alternância, metodologia utilizada nas escolas agrícolas. “Outro fato é o acesso a algumas políticas públicas, como o acesso à terra via crédito fundiário, investimentos como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) Mulher, Programa de Garantia da Atividade Agropecuária (Proagro) e a assistência técnica, entre outros”, acrescenta a Coordenadora.
Para Maribel, é inegável a importância social e econômica do trabalho das mulheres trabalhadoras rurais e agricultoras familiares. “O protagonismo das mulheres rurais reflete a diversidade da atuação feminina no campo e a quantidade de alimentos e produtos produzidos pela agricultura familiar. Hoje, o trabalho das mulheres trabalhadoras rurais têm se destacado em diferentes etapas do processo produtivo de alimentos e outras atividades relacionadas à geração de renda.”
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Diferente da maioria dos homens, a mulher do campo não é apenas uma trabalhadora rural, já que desempenha tarefas multifuncionais na propriedade, no âmbito familiar e na comunidade onde vive. São mães, esposas e professoras dos filhos.
A jornada tripla convive, ainda, com adversidades e desafios. “Há a desvalorização e a invisibilidade do trabalho feminino, a violência doméstica e o acesso desigual aos recursos produtivos e às políticas públicas. Temos muito que avançar no que diz respeito ao trabalho das mulheres do campo, que na maioria das vezes está muito relacionado às tarefas domésticas. Ainda temos uma parte da sociedade que vê a mulher como uma mera ajudante. Sabemos que o trabalho da mulher e o protagonismo dela na propriedade rural são fundamentais na gestão da propriedade e na geração de renda da família”, salienta Maribel.
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A coordenadora das trabalhadoras rurais da Fetag-RS frisa que as mulheres do campo têm o apoio das entidades sindicais. Desde 1985, por exemplo, a Fetag-RS tem uma comissão estadual de mulheres trabalhadoras rurais, composta por aproximadamente 50 integrantes que representam as 23 regionais sindicais do Rio Grande do Sul. Os objetivos da comissão são organizar e sindicalizar a mulher trabalhadora rural, lutar por políticas públicas e por direitos específicos das trabalhadoras rurais e dar visibilidade e despertar para sua importância na sociedade, dentre outros. “Além das ações da federação e dos sindicatos, no 8 de março, nós, mulheres do campo, temos a Marcha das Margaridas, que acontece a cada quatro anos em Brasília, uma ação coletiva das trabalhadoras agricultoras familiares que levanta a bandeira de luta de todas nós”, completa.
Também produtoras rurais de Linha Entrada São Martinho, Marli Beckenkamp, de 62 anos, e a nora Vera Beckenkamp, de 37, conciliam todo o trabalho com tabaco, feijão, milho, mandioca e batata. Para Vera, é possível perceber evoluções em relação ao trabalho das mulheres no campo. “Antigamente eram só os homens que apareciam, mas agora as mulheres estão tendo mais espaço.”
Vera Beckenkamp acrescenta que além do trabalho na lavoura, quando chega em casa a mulher rural vai direto para os outros afazeres. “Faz almoço, lava a louça, varre a casa, e quando vê, já está na hora de ir para a roça de novo, ou para o galpão costurar tabaco. O descanso é pouco, ainda mais em outubro, novembro e dezembro, por causa da colheita”, completa.
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Veronica Etges, de 47 anos, viu em sua experiência no campo uma oportunidade para diversificar os serviços oferecidos em sua propriedade, situada em Boa Vista, em Santa Cruz do Sul. Ela lembra que o dom para administrar um negócio vem da criação que teve. “Sou filha de pequenos agricultores e o que faço hoje eu trago na minha essência. Quando éramos crianças, o ponto de referência era a minha mãe. Com ela aprendi a organizar uma propriedade, juntamente com dois irmãos e seis irmãs”, relembra.
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A propriedade, adquirida da família do marido, foi transformada em uma bela opção de lazer para quem gosta de estar próximo à natureza, além de proporcionar experiências gastronômicas. Segundo a produtora, em uma temporada na Alemanha, conseguiu adquirir conhecimento e teve a convicção de que daria certo. “A ideia da pousada surgiu com a necessidade de diversificação da propriedade, em almejar uma qualidade de vida para a família.”
Veronica comenta que há dificuldades para quem produz no campo, mesmo para quem faz uma boa administração, equilibra e diversifica, como ela. “Temos toda a plantação dos mantimentos e o excedente é para venda. É produção familiar, não temos funcionários fixos. Para um empreendimento turístico, devemos pensar em várias frentes. Como tenho experiência em vários aspectos, não foi difícil puxar a frente nesse novo projeto. Faço doces, geleias, cucas, bolachas e muitas outras receitas. Tudo isso vai agregando valor dentro da propriedade”, diz.
E todas essas tarefas, segundo Veronica, geralmente acaba ficando com a mulher. “Mas não desmerecendo os homens, porque também necessitamos desse equilíbrio. Precisamos trabalhar juntos.”
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