A noite caía em Heliópolis, bairro da capital do Egito, no que seria apenas uma breve escala em minha viagem para Abu Dhabi naquele dezembro de 2010. A mala estava pronta para, na manhã seguinte, juntar-me aos mais de 10 mil torcedores gaúchos que chegavam aos Emirados. Com o ingresso para a decisão na mão, a semifinal com os congoleses parecia uma mera formalidade rumo ao bicampeonato. O futebol, contudo, reservava uma desagradável surpresa para a torcida alvirrubra.
Quase 5 mil anos nos separam do auge da civilização egípcia. A atual nação, Misr em árabe, com sua cultura muçulmana e cóptica, tem identidade própria e atual. O Egito dos faraós, dos templos de Amon, Akenaton, das pirâmides e do Vale dos Reis, existe somente no que restou dos magníficos templos e tumbas que são, literalmente, faraônicos. Como pode um povo tão antigo ter alcançado uma organização tão avançada?
Como um milagre da natureza, o vale mais fértil do mundo resplandece dentro do maior deserto do planeta. A abundante agricultura do delta do Nilo baseia-se nas enchentes anuais da região. No passado, essas cheias garantiam a condição de divindade aos faraós por seu suposto controle sobre as águas. A tecnologia assumiu hoje esse papel, e a represa de Aswan, concluída em 1970, acabou de vez com as enchentes. Orações e sacrifícios ao caudaloso rio foram substituídos por bombas de irrigação e pela geração de energia hidrelétrica.
Publicidade
Sobre o delta, e alvo da ambição de romanos, cruzados, Alexandre Magno, Napoleão, Hitler e outros, o Cairo (El Qahira) é uma metrópole com 21 milhões de habitantes, ou um terço da população do país, e inúmeros lugares que precisam ser vistos e vividos. Um olhar superficial sobre a capital dá a impressão de uma explosão urbana, com ruas lotadas, comércio caótico e um concerto absurdo de buzinas em um trânsito desordenado. De perto, a maior cidade da África é um organismo extremamente complexo e um espetáculo da cultura islâmica, em seu esplendor arquitetônico e cultural, enchendo os olhos e a alma, em especial para quem ousa fugir de roteiros turísticos tradicionais.
No campo religioso, seus monumentos e mesquitas tiveram melhor sorte do que os de outras capitais do mundo islâmico, como Bagdá e Damasco, ambas devastadas pelos mongóis. A maior mesquita do Cairo, Ibn Tulun, foi construída em 879. Sobre seu sereno pátio de 30 mil metros quadrados estão 6 mirabes, indicando a direção de Meca. A madraça (escola islâmica) e o mausoléu Sultão Hasan foram construídos com as pedras que revestiam a pirâmide de Quéops e impressionam, pelo gigantismo e pela decoração. Próximo dali, o mármore da mesquita de Rifa’i guarda túmulos da antiga realeza egípcia, incluindo o último rei, Farouk, e, para minha surpresa, seu cunhado e último monarca (xá) do Irã, Mohammad Reza Pahlavi.
LEIA MAIS: Sérvia, berço da mente brilhante de Tesla
Publicidade
O Museu Egípcio é um dos maiores tesouros da humanidade. Caminho até ele atravessando a praça Tahrir, onde já havia indícios da movimentação popular que, dias depois, culminaria na Revolução Egípcia de 2011, com a praça como seu maior símbolo. No enorme museu, a relativa falta de organização e difícil orientação não diminuem em nada a impressionante concentração arqueológica e histórica.
Além das incontáveis múmias e monumentais estátuas, dois setores do museu me marcaram de modo especial: o destinado à Akenaton, faraó que introduziu o monoteísmo (deus sol) na história humana; e o mais popular deles, destinado aos tesouros do túmulo de Tutancâmon. Nesse último, entre milhares de objetos e amuletos, estão os famosos sarcófagos e a incrível máscara funeral do jovem faraó, com 4 quilos de ouro puro, encrustada com pedras de quartzo e lápis-lazúli.
Antes de prosseguir no relato sobre o Cairo, faço uma pausa para retomar o drama causado pela equipe futebolística do antigo Zaire. Terminada a partida, enquanto o talentoso e folclórico goleiro Kidiaba fazia sua coreografia sobre o gramado, eu já estava ao telefone com a companhia aérea Egyptair para alterar meu próximo destino. Em vez de Abu Dhabi, partiria para a espetacular Luxor, que estava fora do roteiro original. Ao menos por esse aspecto, sou de alguma forma grato ao atacante Kabangu e seus colegas de equipe.
LEIA MAIS: Pelo mundo: Belgrado, o encontro de dois grandes rios
Publicidade
This website uses cookies.