O Brasil é o terceiro país do mundo com mais registros de abuso sexual envolvendo crianças e adolescentes. Para reverter tal posição nesse triste ranking e pensar soluções para evitar que os casos continuem acontecendo, foi realizado nesta semana o 2º Congresso Brasileiro de Prevenção à Violência Sexual Infanto-juvenil.
A Gazeta do Sul acompanhou o evento, realizado de forma digital nessa quarta-feira, 14, e quinta-feira, 15, e que debateu o papel das instituições para a prevenção desses crimes. Organizado pelo projeto voluntário Futuro Brilhante, o congresso reuniu palestras de 12 profissionais de diversas áreas, como psicologia, serviço social, terapia ocupacional, pedagogia, direito e segurança pública.
Os especialistas, que atuam no combate aos casos de abuso sexual infantil e no atendimento às vítimas, compartilharam um panorama assustador, mas identificaram também ações bem-sucedidas para reduzir a ocorrência dessas agressões.
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Um dos objetivos do 2ª Congresso Brasileiro de Prevenção à Violência Sexual Infantojuvenil é buscar maneiras de evitar novos casos. O consenso entre os 12 especialistas que palestraram nos dois dias de evento é que a educação e o conhecimento por parte de crianças, pais e profissionais das instituições são o primeiro passo para o fim do ciclo do abuso.
Isso passa pelo ensinamento de novos valores às crianças, educando meninos e meninas da mesma forma, além de abolir materiais como a pornografia, que criam naturalidade diante da cultura de estupro. “Acredito que se mudarmos a forma como se aborda atualmente, vai surtir efeito. A cada dia os números aumentam, devemos mudar os hábitos para ter novos resultados. A gente precisa mudar essa percepção”, explica a autora Samara Siqueira, que sofreu abuso dos 6 aos 7 anos e hoje trabalha ajudando as vítimas.
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Aos pais, as orientações são que ensinem aos filhos o nome dos órgãos genitais, como pênis e vagina, sem dar apelidos. Uma forma de ensinar limites é desenhar um bonequinho com os pequenos e marcar com sinais vermelhos, verdes e amarelos onde as crianças podem ou não ser tocadas pelos adultos.
Consentimento também é importante: é preciso sempre pedir permissão antes de tirar a roupa na hora do banho e não obrigar que os filhos sejam abraçados ou beijados por estranhos. Isso ensina à criança que ela tem autonomia e é dona do próprio corpo. Outra sugestão é que não basta apenas recomendar às crianças não falarem com estranhos, porque na maioria das vezes o abusador tem ligações com a família e conhece a vítima.
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Os especialistas também entram em acordo quanto aos agressores: eles podem ser qualquer pessoa, independentemente de classe social, religião, idade ou ligação de parentesco ou amizade com a família. “É preciso retirar essa ideia de que o seu ciclo social é seguro e a ilusão de que apenas meninas ou pessoas em situação de vulnerabilidade são vítimas. Nunca subestime o seu ciclo social, ninguém tem competência para detectar uma pessoa assim”, explica Samara. Os abusadores podem ser muito eficazes na fase de aliciamento das crianças e manipuladores, o que torna difícil identificá-los. Não há um estereótipo de abusador ou abusadora.
Também existem diferenças entre violência sexual e pedofilia. O abuso é um conceito amplo, diz respeito a toda e qualquer violação dos direitos humanos que envolva aspectos de sexualidade. A pedofilia é um tipo de doença, que deve ser diagnosticada por equipe multiprofissional. “Por se tratar de um desejo, o indivíduo em questão pode nunca cometer uma violência sexual, nem todo pedófilo comete crimes. Da mesma forma que nem todas as pessoas que cometem crimes de violência sexual são pedófilos. O abusador faz isso no momento em que lhe é permitido”, explica o doutro em Educação, Márcio de Oliveira.
Um dos assuntos do evento foi o papel da escola na prevenção do abuso contra crianças e adolescentes. Segundo Márcio de Oliveira, dentro da escola não cabem achismos ou dogmas pessoais, e professores, diretores ou orientadores devem estar munidos de saber científico de qualidade. “A escola deve trazer para si a responsabilidade, gerar discussões e reflexões sobre gênero e sexualidade. É um erro grotesco achar que está tirando a inocência das crianças, quando na verdade está mostrando os aspectos necessários para a proteção delas.” Para o especialista, nem todas as famílias estão aptas a discutir temas que são tabus, por isso é fundamental o papel da escola, com capacitação e materiais adequados.
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DPCA de Santa Cruz é pioneira na escuta especializada
Santa Cruz do Sul possui uma delegacia especializada nos crimes envolvendo menores, com atuação exclusiva no município. De acordo com Lisandra de Castro de Carvalho (na foto acima), titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), as vítimas são ouvidas por psicólogas. A escuta especializada respeita a idade, o nível intelectual, os sentimentos e as condições psicológicas da vítima. As entrevistas acontecem em uma sala decorada para receber as crianças e em outra para atendimento dos adolescentes.
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A DPCA é pioneira nesse método de escuta, que ocorre em Santa Cruz desde 2005. Recentemente, com a lei que tornou o método obrigatório, as outras delegacias especializadas do Estado estão se equipando para se adequar. Mesmo que o registro seja feito fora do horário de atendimento da DPCA ou nos fins de semana, na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA), representantes da especializada entram em contato para agendar a conversa com um profissional.
“Quando é feita a entrevista, a delegada ou uma inspetora acompanham via câmera e computador e fazem perguntas para a psicóloga que conduz a conversa com a vítima. Tudo isso para reduzir os danos secundários, que, além do fato principal, a criança sofre por toda vez que precisa repetir a mesma história”, explica. Após o registro ser feito pelo comunicante, a criança passa por atendimento com a psicóloga, o caso é investigado e o inquérito vai para o Judiciário. Mais tarde, pode ser expedido mandado de prisão preventiva ou medida cautelar de proibição de aproximação da criança. A família é então encaminhada para a rede do município, com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e o Conselho Tutelar.
Lisandra, que também é responsável pela Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), explica que as meninas ainda são a maioria das vítimas, mas há também casos envolvendo meninos. As idades deles variam e há adolescentes, crianças e até bebês vítimas de violência sexual. “Houve uma criança de 3 anos este ano. Ano passado teve um bebê, são vítimas de todas as idades.”
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Para a delegada, o ideal é que a família procure a DPCA assim que surgir alguma suspeita, que não espere comprovar o abuso. “Tem que trazer ao conhecimento da polícia, que tem a técnica de investigação. Nos procurem para tirar dúvidas, para orientação. Através da conversa, podemos verificar a situação e ver se há um crime.” A preferência também é que crimes envolvendo crianças sejam levados diretamente à DPCA, salvo em casos de flagrante ou perigo iminente durante o final de semana, que devem ser registrados na DPPA.
A delegada avalia o número de casos na cidade como expressivo e conta que neste ano, com a pandemia, foi possível constatar dois fenômenos. “O primeiro foi o aumento no número de ocorrências, porque as mães estavam mais próximas dos filhos e puderam observar as características que aparecem nas vítimas de abuso.” Já o segundo foi o aumento de ocorrências de assédio nas redes sociais. “Tem a ver com a pandemia, de ficar mais em casa e acessar em peso todo tipo de sites. Os abusadores se aproveitaram dessa situação para se aproximarem das vítimas”, conta.
Segundo os dados estatísticos fornecidos pela DPCA, 252 ocorrências foram registradas em 2020 (veja na página a seguir). Destas, 18 foram casos de estupro de vulnerável – quando a vítima tem menos de 14 anos – e quatro de estupro, envolvendo adolescentes entre 14 e 18 anos. O mês com o maior número de registros foi fevereiro, com 42, e os que tiveram menos casos foram maio e junho, com 10 e 14 registros. Apesar de parecer que há uma redução em relação a 2019, a delega recomenda cuidado nessa avaliação. Isso pode ocorrer pela subnotificação dos casos, por conta daqueles que não são denunciados e registrados na Polícia Civil.
Um bom exemplo
O projeto voluntário Futuro Brilhante surgiu em 2014 para atender crianças em situação de vulnerabilidade social e econômica da Vila Cruzeirinho, comunidade do Pará, com o fornecimento de kits escolares. Desde 2018, em razão de estudos sobre os fatores que aumentam a vulnerabilidade de crianças e adolescentes, as ações do projeto foram direcionadas para a prevenção da violência sexual infantojuvenil. Para isso, houve a produção de materiais educativos como cartilhas, podcasts, publicações nas redes sociais e ações de estímulo à Educação Infantil. Mais informações sobre o projeto e o congresso podem ser obtidas no site futurobrilhante.net.br
NÚMEROS
Fontes: Agência Brasil, Safernet, Organização das Nações Unidas (ONU), Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
OS NÚMEROS EM SANTA CRUZ
Casos de estupro de vulnerável por ano
2020 – 18
2019 – 39
2018 – 21
2017 -49
Crimes contra crianças e adolescentes em 2020
Estupro – 4
Estupro de vulnerável – 18
Outros crimes sexuais – 3
Perturbação da tranquilidade – 3
Vias de fato – 16
Lesão Corporal – 29
Maus tratos – 10
A delegada Lisandra aponta algumas alterações de comportamento demonstradas por vítimas de abuso e que são sinais de alerta, aos pais, de que algo pode estar acontecendo com a criança. “A criança extrovertida fica introvertida, queixa-se de dores na região genital, volta a fazer xixi na cama quando não fazia mais. Esses sinais podem aparecer nas vítimas e são perceptíveis quando estamos mais próximos”, conta a titular da DPCA.
Outros indícios podem ser percebidos no ambiente escolar: a criança possuía amigos e passa a ficar sozinha no recreio, por exemplo. Se o aluno mantém os olhos fixados na professora e não olha para os colegas, nem interage, possivelmente algo pode estar errado. Os pais também podem perceber as mudanças, quando crianças calmas e carinhosas passam a agredir outras ou a cometer autoagressão; se aparecem com lesões como hematomas ou arranhões, ou apresentam alterações de sono e de apetite.
Uma das dicas oferecidas pelos especialistas durante o congresso é que os pais evitem postar muitas fotos e vídeos dos filhos em perfis nas redes sociais e grupos do WhatsApp, já que nunca se sabe onde esse material pode ir parar. Outro alerta é que a família monitore o que as crianças acessam online, conferindo sempre o conteúdo de cada link, para que não sejam expostas a conteúdos nocivos ou a possíveis predadores.
Thiago Domingues, especialista em comunicação digital no mercado de videogames, orienta que os pais devem monitorar os jogos, como qualquer atividade da criança. É importante saber quais são os games, por quanto tempo e com quem estão brincando, para a atividade seja exercida de modo saudável. Isso vale para consoles, jogos no computador e celular. Também vale conferir a classificação etária dos jogos, se eles têm restrição de idade, indicam quais os elementos impróprios, como linguagem adulta, violência extrema ou conteúdo sexual. “Os pais devem decidir se os filhos têm maturidade para lidar com esse tipo de conteúdo”, ressalta.
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