Semanas atrás chegamos no sítio e, para nossa surpresa, havia dois hóspedes desconhecidos à nossa espera. Simpáticos, receptivos, externando uma alegria descomunal nestes tempos tão sisudos, até ficamos desconfiados. Quem seriam estes visitantes? De onde vieram? Por que estavam em nosso quintal? Magros, visivelmente carentes e esfomeados, relevamos perguntas óbvias e tratamos de providenciar uma refeição com os recursos que tínhamos à disposição naquele momento.
Não lembro de ter visto algo tão comovente. Comida servida em um prato improvisado, eles se revezavam (por consanguinidade, amizade, respeito, sei lá por que razões que nós humanos desconhecemos ou fazemos questão de ignorar) de forma que um e outro se mostraram satisfeitos. E agradecidos.
E agora? – nos questionamos. O que vamos fazer com nossos hóspedes? Não estávamos preparados para uma adoção não planejada, ainda mais em dose dupla. Quando relatei esse fato inusitado a um amigo, ele me deu a dimensão do que acabara de acontecer. “Um prato de comida pode ser apenas um gesto. Ou pode ser um vínculo para sempre. De acolhida e gratidão.”
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Não sei. Mas depois de dois dias de convivência (e conhecimento recíproco), tivemos que voltar para casa. Eles ficaram, provavelmente sem entender o que estava acontecendo, mas se sentiram acolhidos.
Saímos desconfortáveis, coração apertado. Mas sem opção.
Mais cedo do que planejado, até porque não é perto, nos sentimos emocionalmente intimados a voltar. Eles continuavam lá e fizeram uma festa comovente para nos receber. Dessa vez já fomos prevenidos e levamos na bagagem mais do que mantimentos. Fizemos uma logística que pudesse suprir nossa ausência como anfitriões e deixá-los minimamente confortáveis e supridos de alimentos.
Ainda não sabemos por que e como foram parar lá. Muito menos os nomes. Para resolver questões pragmáticas do dia a dia, nós os chamamos de Pretinha e Branquinho. Até parece que entendem.
Quando procuramos encontrá-los nas câmeras, por vezes temos a impressão de que sentem nossa energia.
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Já se passaram muitos anos, mas não o suficiente para apagar da memória a reação de um menino, lá no interior, quando soubemos que cuidava uma ninhada de cachorrinhos nascidos algumas semanas antes.
Cãezinhos pequenos, ainda filhotes, quase sempre comovem e nos cativam. Perguntei se podia me ceder um ou dois para adotarmos. Ele concordou. Mas foi irredutível diante da minha escolha. “Esse aí não!” – disse ele, convicto. Quando quis saber o motivo, ele foi avisando: “Já peguei amor por ele”.
Receio que algo parecido esteja acontecendo conosco, em um momento e em circunstâncias incompatíveis para consolidar essa relação. Mas faremos o melhor até que encontrem um lar definitivo. Não acho justo que alguém despeje a própria responsabilidade no quintal alheio.
Eles merecem mais do que um abrigo e comida. Querem acolhimento, convivência, pedem para se sentir úteis. Visivelmente. Enquanto estivemos com eles, passavam as noites, incansáveis, vigiando a casa e todo entorno. Alguns latidos a mais do que estamos acostumados, é verdade, mas que passavam uma sensação de segurança, de vigilância externa.
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Não sei como esta história vai acabar. Temo pelo futuro da Pretinha e do Branquinho porque, órfãos de um tutor presente que lhes dê carinho, abrigo, que os oriente e lhes estabeleça limites, ficam vulneráveis ao descaminho. Como acontece, aliás, com muitas crianças e adolescentes que se sentem desamparados afetivamente.
De qualquer forma, fica para nós uma certeza: quando se tem coração receptivo e mente aberta, problemas, injustiças, incompreensões se transformam em desafios. E desafios, diante da preservação de qualquer forma de vida, são feitos para serem superados. Se uma circunstância nos tirar da zona de conforto, vamos conhecer o nosso real tamanho: de solidariedade e de comprometimento com a vida.
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