Descendentes de alemães comemoram em 2019 os 170 anos da chegada dos primeiros imigrantes à região de Santa Cruz do Sul. Exatamente 100 anos depois da vinda dos primeiros colonizadores germânicos ao então interior de Rio Pardo, as primeiras famílias de uma outra etnia desembarcavam no Rio Grande do Sul: os neerlandeses, isto é, os holandeses. Em agosto de 1949, eles chegaram para se instalar no Noroeste do Estado, na época ainda bastante despovoado.
Nas proximidades de Passo Fundo, ajudaram a conformar a localidade que apenas cinco anos depois, em 1954, viria se emancipar com o nome de Não-Me-Toque (ao que tudo indica em alusão à árvore não-me-toques, de tronco curto e muito espinhenta, que ocorria em larga escala em toda aquela região).
E sete décadas depois da chegada dos primeiros imigrantes, contribuíram de forma decisiva para transformar o município em referência nacional como a Capital da Agricultura de Precisão, auxiliando na modernização e na eficiência das atividades agrícolas. Empresas como a Stara, fabricante de máquinas e implementos agrícolas de última geração, tiveram no empreendedorismo e na determinação de famílias holandesas o segredo de sua energia.
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Hoje, os cerca de 30 imigrantes originários que ainda são vivos e seus descendentes conformam contingente de cerca de 300 habitantes da etnia holandesa. Podem não ser muitos em relação aos cerca de 17 mil moradores locais (em sua maioria italianos e alemães), mas colorem de “laranja” e erguem seus moinhos de vento na paisagem cultural da região e, claro, de todo o Rio Grande do Sul.
Imprimem a Não-Me-Toque seu perfil cultural, marcado por hábitos, tradições e costumes, da arquitetura ao estilo de vida, da culinária (o famoso croquete holandês, chamado de bitterballen, à base de carne, feito com um ensopado engrossado com roux, mistura de partes iguais de farinha e gordura, e caldo de carne).
E ajudam a costurar o mosaico étnico local, ainda marcado por alemães, italianos, portugueses e africanos. No Natal Étnico, evento de integração a cada final de ano e cuja 19ª edição, de 2019, está em andamento, com atividades até o dia 22 de dezembro, cada um desses povos compartilha com os demais suas particularidades, como recorda a secretária de Cultura, Desporto e Turismo de Não-Me-Toque, Jaqueline Meyer. Nessa sexta-feira, por exemplo, ocorreu o Festival de Danças Étnicas.
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Presença na socioeconomia em várias regiões
Os holandeses que vieram ao Rio Grande do Sul chegaram praticamente na mesma época em que outras levas se instalaram no interior de São Paulo, onde fundaram a colônia de Holambra, em 1948, um ano antes do início do movimento migratório para território gaúcho.
“Os holandeses que vieram para cá tiveram o acompanhamento muito próximo na época dos irmãos franciscanos”, menciona Teodora Lütkemeyer, que lidera movimento de fixação da memória desse povo. E comenta que até hoje trabalho, persistência e religiosidade são pilares dessa comunidade.
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Outra região do País para a qual houve imigração neerlandesa forte é a de Castro, no Paraná, onde as primeiras famílias holandesas chegaram a partir de 1911, fundando a colônia de Carambeí. Entre 1951 e 1954, no mesmo fluxo imigratório que trouxe colonizadores para o Rio Grande do Sul, novas famílias holandesas chegaram a Castro, desta vez fundando a colônia de Castrolanda, com forte bacia leiteira e produção de grãos, conduzidas de maneira cooperativa.
Em São Paulo, o espírito empreendedor igualmente se verificou, com a dedicação ao cultivo de flores, de tal modo que hoje Holambra é polo nesse setor. Como o movimento cooperativo de lá no início não vingou com plena força, muitas famílias vieram tentar a sorte ao lado dos demais migrantes em Não-Me-Toque.
E desta, por sua vez, quando as dificuldades se impunham, muitos acabaram uma vez mais migrando para outros centros. Inclusive para Santa Cruz do Sul, a cerca de 200 quilômetros, ou três horas de viagem do núcleo de colonização.
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Hoje presidente da Associação Holandesa de Não-Me-Toque, fundada há cerca de 30 anos por representantes dessa etnia, e ex-prefeita do município na gestão de 2013 a 2016, Teodora frisa que muitos holandeses foram trabalhar em Santa Cruz ou na região. “Um de meus tios por muitos anos atuou próximo a Santa Cruz”, comenta.
Mas entre os que ficaram no núcleo original da colonização houve famílias extremamente bem-sucedidas. A tal ponto que hoje Não-Me-Toque é referência em desenvolvimento. E os descendentes mantêm contato regular com a Holanda, onde a maioria das famílias segue tendo vínculo com parentes.
Teodora comenta que ela própria foi várias vezes à terra de seu pai, Andricus Soulier, e da mãe, Ana. E a comunidade interage com o consulado e a embaixada holandesa, em projetos e ações. Teodora também é presidente do Sindicato Rural do município, cuja realidade é de forte diversificação.
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A história registrada
O período histórico das sete décadas de presença holandesa no Noroeste gaúcho mereceu uma pesquisa e um registro em 2011. É o livro A caminho da esperança: imigração holandesa em Não-Me-Toque, da imigrante Cornélia van Riel em parceria com Helaine Gnoatto Zart, lançado pela RH Publicações, tanto no formato impresso quanto em versão digital, disponibilizada para todos os interessados, gratuitamente, no site oficial da etnia, www.holandesesnmt.com.br.
Nesse endereço, além do histórico e do compartilhamento de muitas fotos associadas aos primeiros colonizadores ou às etapas de desenvolvimento de Não-Me-Toque, os descendentes têm a oportunidade de interagir e de se informar mutuamente.
Letras de cor laranja
A Holanda caberia sete vezes no território do Rio Grande do Sul – em relação ao Brasil, então, não faria nem sentido tentar estabelecer alguma comparação desse tipo.
A nação também é conhecida em âmbito mundial como Países Baixos, ou Neederlands, uma vez que 60% de sua área situa-se abaixo do nível do oceano, no litoral do Mar do Norte. Já a sua população é de cerca de 17,1 milhões de habitantes, enquanto os sul-rio-grandenses somam em torno de 11,3 milhões.
No entanto, no terreno da projeção global, os holandeses dão um banho: basta verificar que a pequena nação possui nada menos do que 20 ganhadores de Prêmio Nobel, em diferentes categorias.
Em nossa realidade, é comum lembrar da Holanda por conta de personagens ilustres, como o filósofo Baruch Spinoza e o pintor Vincent van Gogh, que nasceu lá, ou da memorialista Anne Frank, que lá morou em parte de sua vida. Além disso, cidades como Amsterdam, a capital, e Haia, o coração político e econômico, são atrativos turísticos.
No terreno cultural, a literatura pode constituir uma excelente via de aproximação e de entendimento do modo de ser e de viver dos holandeses. Alguns de seus maiores expoentes como escritores têm ao menos parcela de sua obra publicada no Brasil.
É o caso de Multatuli, pseudônimo artístico de Eduard Douwes Dekker, o grande autor nacional neerlandês (algo equivalente a Machado de Assis no Brasil); e de Louis Couperus, Marcellus Emants, Peter Buwalda, Toine Heijmans, Ian Buruma e Cees Nooteboom, este lembrado de forma recorrente para o Nobel de Literatura.
Para o Rio Grande do Sul, que recebeu uma significativa colônia holandesa, contribuição valiosa em seu mosaico étnico, conhecer mais e melhor dessa cultura pode ser uma valiosa via de enriquecimento cultural.
Tem holandês entre nós
Santa Cruz do Sul pode não ter motivado uma migração mais intensiva de famílias de holandeses, mas eles igualmente estão presentes na sociedade local. E inclusive já chegaram a ser bem numerosos, como recorda um holandês, bastante conhecido na comunidade, Derk Lambers, que atua na atração de recursos para a Associação Comunitária Pró-Amparo do Menor (Copame).
A história de vida de Derk é a de um cidadão do mundo, que escolheu Santa Cruz pelas circunstâncias do destino para se fixar. Chegou em 1988, para atuar como diretor comercial junto a uma empresa do setor de tabaco, e por aqui decidiu ficar. A seu exemplo, outros holandeses residem na cidade.
É o caso de Tjitte van der Werf, um legítimo frísio, da região da Frislândia, que se dedica a relações comerciais entre o Brasil e a sua terra natal, e de dona Edite Nuse, hoje com 80 anos, que por muitos anos viveu na Indonésia antes de retornar à Holanda, e que depois se radicou em Rio Pardinho.
Quando Derk chegou à região, ao final da década de 1980, o setor industrial do tabaco havia motivado que cerca de 50 holandeses, entre funcionários de empresas desse segmento e seus familiares, tivessem se fixado em Santa Cruz. “Mas ao longo dos anos, conforme se desligavam das firmas, eles acabaram retornando de novo à Holanda ou se mudando para outros lugares no mundo”, frisa Derk, que é natural da cidadezinha de Denekamp, praticamente na divisa com a Alemanha.
Ele próprio chegou ao Brasil por volta de 1967, aos 27 anos (hoje está com 78). Estava na Holanda, mas antes disso estudara nos Estados Unidos, e por lá conheceu um grupo de brasileiros. Tendo simpatizado com a alegria e a naturalidade deles, decidiu buscar um trabalho no Brasil, e isso aconteceu em Salvador.
Já em 1972 transferiu-se para Blumenau, a fim de atuar como diretor comercial em empresa fumageira, e foi por esse segmento que conheceu Santa Cruz. Atuou na fumageira até o início dos anos de 1990. Em Salvador conhecera uma holandesa, Marijke, com a qual se casou, e da qual ficou viúvo em virtude de um acidente de carro, que a vitimou em 1987, na Alemanha. Tiveram três filhos, o casal Anouk e Tjibbe, radicados nos Estados Unidos, e o adotivo Danny, este em São Paulo. Em Santa Cruz, posteriormente, casou-se novamente.
Há 31 anos dedica-se à função de captador de recursos para a Copame, e pelo menos a cada dois anos procura visitar sua terra natal. Por lá, familiares seus estruturaram uma Copame na cidade de Dordrecht, exclusivamente para enviar recursos aos cuidados da Copame em Santa Cruz.
Derk refere que se adaptou muito bem à rotina em Santa Cruz, cidade que ainda guarda muitas características da colonização alemã, e frisa que ele próprio é adepto de culinária indonésia, frequentando restaurantes tailandeses, japoneses e chineses. Da culinária holandesa, lembra da predileção de seus conterrâneos pela aardappel (batatinha, ou “maçã da terra”, na tradução literal do holandês) e a tradição de fazer um eintopf, um ensopado que reúne na mesma panela os mais diversos ingredientes.
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