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Dom Irineu

Nossa caçula, Ágatha, 3 anos, andava às voltas com uma amiga imaginária. Ambas passavam tardes brincando e correndo pela casa. A folia durava até o anoitecer, quando a coleguinha invisível voltava para sua família em uma bicicleta colorida, conforme nos relatava a pitoca. Porém, certo dia, as duas discutiram e as coisas saíram do controle. Ágatha nos confessou ter dado um chute na amiga, que tratou de ir embora às pressas em sua bicicleta. Embora se tratasse de uma agressão imaginária, ouvir aquele relato, narrado em voz de criança, me preocupou. Apesar dos esforços, meus e da Patrícia, em educar a turminha de casa, a cultura da violência havia chegado à caçula. Foi inevitável.

E então me lembrei dos ensinamentos do saudoso dom Irineu Guimarães. Quando dom Irineu nos deixou, após sete anos enfrentando os efeitos cruéis da esclerose lateral amiotrófica (ELA), amigos me cobraram um texto sobre o monge rio-pardense. Logo pensei em escrever sobre o espírito de serenidade que o acompanhava desde os tempos em que ainda era o padre Marcelo – tornariase dom Irineu após os votos beneditinos. Essa serenidade o acompanhou mesmo nos estágios mais devastadores da doença, já na Abadia de Tournay, na França. Porém, vim adiando sistematicamente este texto, dada a dificuldade em falar de uma personalidade tão complexa. E lá se vai quase meio ano desde aquela manhã de 10 de outubro, quando, em meio a uma garoa chata e insistente, me chegou via WhatsApp a notícia de que Irineu havia morrido.

Escrever sobre dom Irineu é empresa difícil porque qualquer texto que busque decifrá-lo corre o risco de ficar medíocre diante da complexidade do pensamento do monge. Beneficiado por uma inteligência muito acima da média, doutor em Educação, autor de vários livros, tinha uma perspicácia surpreendente ao interpretar o que estava em jogo nos conflitos contemporâneos – e a sugerir que todos nós tínhamos potencial para, mesmo longe dessas guerras, lutar para combatê-las por meio de preceitos  pacifistas. Era o que fazia nos anos 90 a rede Em Busca da Paz, que congregava dezenas de grupos de jovens da nossa região, sob o comando do então padre Marcelo. Cada grupo movia diferentes campanhas em prol de povos oprimidos pela guerra em diferentes partes do mundo. Porém, muitos de nós, integrantes da rede, fomos gradativamente influenciados por nosso próprio pragmatismo, decorrente do ingresso na fase adulta.

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Passamos a nos perguntar quais os efetivos resultados de tanto trabalho por gente que estava tão longe, se em nossas cidades também havia violência e miséria. Hoje, percebo que a preocupação de padre Marcelo estava tanto nesses povos distantes quanto em nós mesmos e na nossa realidade local. Ao formar pacifistas, quis oferecer resistência diante da cultura da violência que nos rodeia, que nos faz gostar de armas, de filmes de bangue-bangue e de games de guerra. Que leva crianças de 3 anos a aprender, por osmose, o que é um soco ou um chute. Entendo, só agora, o que Marcelo/Irineu, um religioso católico, queria dizer ao repetir as palavras do hindu Mahatma Gandhi: “Seja você a mudança que deseja para o outro”

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