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Dois túneis verdes, dois destinos: em Santa Cruz, tipuanas requerem atenção; em Porto Alegre são patrimônio histórico

Qual será o destino do Túnel Verde de tipuanas que embeleza o centro de Santa Cruz do Sul? A resposta a essa pergunta parece estar com um grupo de lideranças, autoridades e especialistas formado por iniciativa do poder público para definir planos de ação e estratégias a fim de lidar com a manutenção ou a condução (talvez com o destino) de um dos patrimônios coletivos da população local. Ao lado dos inegáveis benefícios em termos de ar puro, sombra, controle de temperatura e estímulo a um ecossistema diversificado em plena Rua Marechal Floriano, a mais central da cidade, as tipuanas, plantadas por volta da década de 1940, hoje rendem um dos mais encantadores cartões-postais gaúchos, emoldurando ainda a Catedral São João Batista.

Uma redoma de proteção, contra o sol ou contra a chuva, para todos os seres vivos
Imponência: a Catedral ladeada pela alameda de tipuanas é uma imagem do Centro de Santa Cruz do Sul que hoje circula pelo mundo
Pelo argumento de alguns, essa cena da Marechal Floriano de décadas passadas poderia ser repetida, com a retirada do Túnel Verde atual

O Túnel Verde de tipuanas de Santa Cruz não é uma exclusividade local. Em Porto Alegre, outra alameda formada com a mesma espécie rendeu à Rua Gonçalo de Carvalho, na entrada do Bairro Independência, a alcunha de “rua mais bonita do mundo”. Ao contrário do coirmão santa-cruzense, o túnel de tipuanas da Capital é tombado por lei desde junho de 2006, como Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade. Por que destinos tão diferentes?

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A Gazeta do Sul consultou o paisagista, agrônomo e fotógrafo Paulo Backes, de 60 anos, um dos mais respeitados e renomados botânicos da atualidade, radicado na área central de Porto Alegre, e que conhece muito bem os dois conjuntos de arborização. Detalhe: Backes é santa-cruzense, formado em Agronomia pela Ufrgs e autor de alguns dos livros referenciais para todos os que estudam sobre arborização e botânica. É o caso de Árvores do Sul, Árvores cultivadas no Sul do Brasil e Mata Atlântica – As árvores e a paisagem e Lutzenberger e a paisagem.

Profundo conhecedor da teoria, Backes foi para a prática ao coordenar, por exemplo, a implantação do Parque Ambiental da Souza Cruz, em Santa Cruz do Sul, um verdadeiro santuário verde junto ao Distrito Industrial. Nesta entrevista, concedida por e-mail, ele evidencia por que um túnel verde de tipuanas é um patrimônio tão valioso e merece máximo empenho para a proteção, por parte da comunidade e de todos os organismos públicos.

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Entrevista – Paulo Backes, agrônomo, paisagista e fotógrafo

  • Gazeta do Sul Há quantos anos e a partir de que circunstância o senhor começou a pesquisar e a se especializar sobre botânica?
    Paulo Backes – A botânica entrou na minha vida quando comecei o curso de Agronomia, em 1978. Tinha duas disciplinas específicas, e foi paixão à primeira vista. No final do curso, encaminhei minha carreira para o paisagismo, trabalho que exerço até hoje. Após alguns anos atuando nessa área, senti vontade de voltar a estudar e ingressei na Pós-Graduação em Botânica da Ufrgs, onde fui pesquisar flora nativa do Estado. Meu orientador foi o professor Bruno Irgang, que era um apaixonado pelas árvores. Foi uma consequência natural eu também me dedicar ao estudo delas. Anos mais tarde, quando comecei a trabalhar com o José Lutzenberger, surgiu um trabalho na Souza Cruz, por meio do engenheiro agrônomo Saul Bianco. Implantamos os Parques Ambientais da empresa em Santa Cruz e Cachoeirinha. O Bianco coordenava o Clube da Árvore e nos convidou para produzir três livros sobre as árvores nativas e exóticas no Sul do Brasil.
  • Como o senhor avalia a gestão dos espaços verdes nas cidades hoje?
    O Rio Grande do Sul, e particularmente Porto Alegre, foi pioneiro nessa questão. De 1970 para cá, houve muitos avanços e alguns retrocessos. Mas ainda há um largo caminho a percorrer. Faltam planejamento adequado e gestão de manutenção na maioria das cidades brasileiras e gaúchas. E falta um grande trabalho de educação ambiental sobre o valor das árvores nas nossas cidades.
  • A Rua Marechal Floriano, de Santa Cruz, é arborizada por tipuanas, mesma espécie da “rua mais linda do mundo”, a Gonçalo de Carvalho, em Porto Alegre. É uma boa escolha?
    Sim, a tipuana é uma bela árvore, muito resistente e longeva, pode atingir 40 metros de altura. Forma belas alamedas urbanas, que, quando bem cuidadas, tornam a rua muito bonita e agradável. Não sei a data de plantio das tipuanas da Marechal Floriano. As de Porto Alegre foram plantadas na década de 1930, segundo o biólogo Flavio de Oliveira, técnico aposentado da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam). Inúmeras cidades mundo afora possuem túneis verdes com essa espécie, tornando-se parte do patrimônio urbano.
  • O senhor poderia traçar um perfil da tipuana? Por que teria sido essa a espécie adotada nos dois casos?
    Ela é nativa do Norte Argentino e do Sul da Bolívia, numa região relativamente seca, o que já indica sua rusticidade. Cresce ligeiro, beneficiada pelo nosso regime hídrico mais favorável, e forma copadas altas, de boa resistência às intempéries, principalmente quando plantadas como túneis verdes, pois o conjunto minimiza a força do vento.
  • Qual a vida média de uma tipuana? E até que idade pode chegar?
    Essa é uma pergunta difícil de responder com exatidão, pois vivem mais que os humanos e muitos fatores podem influenciar, além da genética da espécie. Mas sabemos que são árvores longevas; existem exemplares com mais de 200 anos. E existem árvores com milhares de anos de vida.
  • Para tanto, o que se entende por uma conservação ou manutenção de tipuana? O que precisa ser feito?
    Árvores precisam de espaço para seu desenvolvimento, tanto no ar quanto no solo. Isso pressupõe planejamento. Calçadas com canteiros de plantio de, no mínimo, 1,5 metro; evitar podas desnecessárias, que prejudicam a árvore, apesar de as pessoas acharem que beneficia. Usar cabos ecológicos na fiação elétrica (usados em Porto Alegre) a fim de evitar as podas. Monitorar as árvores e seu estado fitossanitário e podar ramos comprometidos, e eventualmente substituir os exemplares que apresentem risco.
  • Quanto às raízes da tipuana ou de qualquer outra árvore, como podem ou devem ser conduzidas, ou como se pode e deve conviver com elas?
    O principal fator aqui é a necessidade de a árvore ter um mínimo espaço para suas raízes. Esse mínimo depende do porte. Tipuanas de grande porte precisam de canteiros no seu entorno com pelo menos 1,5 metro quadrado para não causarem problemas no passeio.
  • A tipuana seria uma espécie indicada para arborização de ruas? Quais espécies seriam outras opções com boa relação custo-benefício?
    Sim, é uma espécie indicada para ruas largas, praças e parques. Teríamos várias outras opções, como ipês, pau-ferro, sibipiruna, canafístula. E, mesmo que não fosse ou não seja a mais indicada, ainda assim, faz sentido eliminar ou comprometer um Túnel Verde com tal porte? Só teria sentido se as árvores estiverem com graves problemas fitossanitários, como troncos podres, plena infestação de parasitas e risco de queda. Esse túnel é um patrimônio paisagístico e cultural da cidade, tanto quanto o Parque da Gruta, a Matriz ou a Praça da Prefeitura. É um símbolo forte.
  • O que o senhor sugeriria para quem precisar tomar decisões sobre o Túnel Verde de Santa Cruz?
    Porto Alegre tem uma lei específica sobre o tombamento de exemplares ou bosques notáveis e ou históricos. E tem uma lei específica que obriga o uso de cabos ecológicos (isolados) nesses conjuntos tombados, a fim de evitar podas devido à fiação elétrica.
  • Em quais casos e em que momento se poderia ou deveria pensar em supressão de alguma árvore, ou por gradativa substituição?
    Quando uma cidade quer preservar e criar patrimônio arbóreo, precisa criar ou ter órgãos dedicados para isso. E assim evitar problemas com as árvores. É um trabalho contínuo, desde o planejamento, o plantio e a manutenção. Quando temos isso, supressão é o último caso. E deve ser feita quando há riscos. E são profissionais da área que devem diagnosticar esse risco, tendo o histórico da árvore na mão.
  • Que aspecto sinaliza para a “condenação” de uma árvore? E que sintomas ou aspectos podem merecer um tratamento e uma revitalização?
    A harmonia da copa é o primeiro aspecto a ser considerado. Troncos bem distribuídos, com equilíbrio de peso. Se há desequilíbrio, pode haver problemas. Depois, mais próximo da árvore, examina-se os troncos à procura de manchas de podridões ou galhos secos, sem folhas, na copada. Em geral, árvores que foram muito e/ou mal podadas apresentam mais problemas do que as que não foram. Vale a pena revitalizar quando o tronco não está mais comprometido. Mas cada caso é um caso. Adubações foliares e de solo, recondução com podas corretas são alguns dos tratamentos, mas precisam de continuidade.
  • O senhor assina vários livros sobre árvores. O que a arborização humana representa para a sociedade?
    Sim, inclusive a tipuana está num deles, O Árvores cultivadas no Sul do Brasil. A arborização é uma atividade milenar, do ponto de vista humano, é claro. Porque o planeta arboriza desde que surgiram as primeiras árvores, há centenas de milhões de anos. Elas são muito anteriores à nossa existência, vieram antes dos mamíferos e das aves.
    Bosques criados pela natureza e preservados no território das cidades também fazem parte da arborização. Nossos ancestrais mamíferos mais longevos viviam escondido nas florestas. Humanos dependem das árvores, evoluíram junto a elas; nossa saúde, conforto ambiental e climático dependem delas. O Ministério da Saúde japonês acaba de incluir como prática necessária à saúde da população o acesso a áreas florestais e naturais.
    É impraticável pensar um mundo sem elas. Se as destruirmos, iremos voltar aos terríveis climas do planeta, anteriores à existência das florestas. E, nas cidades, elas são muito importantes para a regulação climática, para conter os extremos de temperatura.
  • O senhor entende que a legislação possa ou deva mudar, no Brasil, para maior ou melhor regramento sobre podas e supressão de árvores?
    Com certeza. Já existem diversas cidades com boas legislações, incluindo os regramentos sobre podas e remoções, mas houve também alguns retrocessos. Mas a maioria ainda tem legislações muito tímidas, ambíguas. As cidades devem criar equipes próprias que cuidem da arborização de forma contínua. O custo-benefício é imensuravelmente favorável às árvores. Talvez um dos principais fatores seja na melhora da saúde da população, onde bilhões de reais podem ser economizados.
  • Como o senhor analisa o cenário urbano de Santa Cruz ao longo dos últimos anos em relação à gestão e à política sobre arborização?
    Santa Cruz me passa a impressão de que teve momentos mais expressivos na sua arborização e não continuou evoluindo. Tem muitas áreas verdes, mas no tecido urbano há poucas árvores e pouca riqueza de espécies.
  • Quanto às podas, como elas devem ser conduzidas?
    A poda só deve ser usada em casos específicos. Podas enfraquecem as árvores, encurtam a longevidade e podem ocasionar diversos problemas, ao contrário do que muitos pensam. Às vezes, é necessária, mas tem que ter técnica para não prejudicar. Árvores frutíferas são podadas e conduzidas para aumentar a produção, mas não para fortalecê-las.
  • O que o senhor sugeriria no caso específico do túnel de tipuanas de Santa Cruz do Sul, ao poder público e à sociedade?
    Um diagnóstico produzido por equipe especializada. Se as árvores estão sadias, criar uma lei de tombamento e de manejo do Túnel Verde.
  • Em Santa Cruz do Sul, a concessionária de energia elétrica RGE tem feito supressões a partir de licença concedida em âmbito de Estado. Tal tipo de licença macro não constitui uma espécie de intervenção rude demais na realidade de uma comunidade e de uma cidade que têm em algumas árvores um patrimônio visual e afetivo? Como uma cidade deve aceitar e gerir tal tipo de ação?
    Depende da legislação da cidade. Essa licença não teria validade em Porto Alegre, que tem legislação específica sobre isso.
  • O que, na literatura e pela lei vigente em nossa realidade, se entende por uma agressão ambiental? Como o senhor avalia a nossa legislação brasileira?
    Nossa constituição é clara ao dizer que o meio ambiente sadio é um direito inalienável. Mas como qualquer espécie, algum impacto sempre iremos causar ao viver. Agressão ambiental é quando esse impacto afeta o coletivo, afeta a sobrevivência nossa e de outras espécies. Nossa legislação é das melhores do mundo, sofreu retrocessos recentes, mas quando o poder público se interessa em preservar, tem as ferramentas para tanto.
  • Que dica o senhor daria às pessoas em sociedade no que tange à relação com a natureza, gostem elas ou não de contato com árvores, tenham ou não apreço por elas?
    Conviver com a natureza e as árvores é condição para o bem-estar e a saúde da humanidade. Adoecemos quando nos afastamos da natureza. É fundamental ter algum modo de convívio regular.

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Em Porto Alegre, tipuanas são tombadas por lei desde 2006

Foi na década de 1930 que, em iniciativa de arborização urbana em Porto Alegre, ruas de diferentes pontos da cidade receberam plantios da espécie tipuana, originária da América do Sul e indicada para a obtenção de conjuntos verdes harmônicos, belos e de sombra nos dias de calor do verão. Uma das vias que receberam mudas foi a Rua Gonçalo de Carvalho, na entrada do Bairro Independência, hoje conhecida área residencial e comercial (a via se localiza, por exemplo, ao lado do Shopping Total). Mais de uma centena de espécimes remanescentes formam uma alameda imponente em pleno século 21, com cerca de 20 metros de altura. Uma foto do conjunto circulou pela internet e chegou ao conhecimento de um professor português, que, vendo-a, não hesitou: elegeu-a como a rua mais bonita do mundo. Para os moradores da Germano de Carvalho, para a população da Capital e para o poder público, nada poderia ter trazido mais orgulho.

Em 2006, a rua foi tombada, pela lei no 15.196, de 2 de junho, como Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade. Tanto moradores quanto instâncias da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smam) e de outros organismos zelam com empenho por essa riqueza natural. O diretor de Áreas Verdes (DAV) da Smam, Alex Souza, recepcionou a Gazeta do Sul na própria Rua Gonçalo de Carvalho na última quarta-feira, 10, para expor as diversas ações da equipe, e de outras áreas da Prefeitura, a fim de conservar, proteger e estender a vida útil da alameda (que, aliás, não oferece qualquer perigo ou está sob algum tipo de risco).

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Souza ressalta que outras alamedas na cidade, do mesmo porte, são formadas por tipuanas. Ele elogia a escolha da espécie, que proporciona retorno excelente em termos de paisagismo e de qualidade de vida. Observa que a tipuana é adotada em arborização urbana ou não urbana justamente pelo crescimento rápido e porte bonito e frondoso. Além disso, é extremamente resistente aos ventos e convive bem num ecossistema. Claro que, por ser de grande porte, exige uma gestão da infraestrutura de calçadas, redes de água e esgoto, fiação elétrica e construções, que devem ser pensadas em função de raízes e galhos. Podas e outras intervenções devem ser planejadas e conduzidas de forma muito profissional, o que em Porto Alegre mobiliza várias equipes, como a Gazeta do Sul detalhará em reportagens especiais nas próximas semanas.

Ao lado do Shopping Total, o Túnel Verde tombado por lei municipal em 2006
Árvores plantadas na década de 1930 orgulham poder público e moradores

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