Dia desses escrevi sobre recordações dos tempos de adolescente, bem coisa de jornalistas “das antigas”, do tempo das laudas, da diagramação em folhas quadriculadas e linotipo para impressão.
Falava dos cadernos de recordação e de diários, ambos da preferência especial das gurias, que gostavam de registrar as aventuras e coletar homenagens feitas por amigos e amigas. Neste momento, com 61 anos completados na terça-feira, 7 de junho, um turbilhão de lembranças invade o meu “escritório da pandemia” – que se resume ao sofá com uma mesinha –, espaço em que estou confinado há 15 meses. Fiquei pensando: será que existe, de verdade, alguma lógica sobre as recordações que acumulamos ao longo da vida?
Os especialistas, é claro, terão teorias científicas para explicar aquilo que fica retido em nossa memória. Não passa um dia sem que se leia conteúdos sobre as mais estranhas pesquisas, estudos, levantamentos. Ouvi com frequência a tese de que “a gente esquece momentos desagradáveis”. Atualizando o linguajar, corresponderia a dizer que “deletamos as más notícias”, mas acho que não é bem assim.
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Querem um exemplo? Recordo com nitidez as reprimendas do meu pai dos tempos em que morávamos na colônia. O velho Giba era um homem alto, de voz grave, que só de olhar impunha medo. Quando eu e minha irmã brigávamos e ele estava num cômodo distante, um assobio era suficiente “para calar a tropa agitada”.
Quando a balbúrdia persistia, os passos fortes no assoalho de madeira ecoavam. Casos mais simples eram curados com um chinelo de couro. Contravenções mais graves exigiam uma varinha de marmelo, que deixava marcas constrangedoras junto aos amigos em nossas pernas.
Também com ele aprendi, depois de ouvir repetidas vezes, que o trabalho e o caráter são fundamentais num ser humano. “Trabalha que com o tempo vais conseguir tudo que queres”, repetia. Essas e outras lições estão na minha memória até hoje, junto com as experiências dolorosas. Portanto, “coisas ruins” ficaram retidas, mas isso não fez com que deixasse de admirar meu pai pelos princípios e valores que insistiu em ensinar, mostrando sempre o valor de cada aula.
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Às vezes me pego num exercício de imaginação, tentando adivinhar sobre o que ficará na memória de todos nós sobre tempos tão ameaçadores. Sim, se não bastasse o vírus, a pandemia de intolerância, ódio e falta de solidariedade consome amizades, compromete relações, ameaça famílias e desaprende o dicionário do bom senso.
Será que um dia saberemos o que, de verdade, nos faz reter lembranças, boas e más? Ficaremos a lembrar das notícias funestas, dos números negativos – e não dos curados, que somam mais de 95% – ou vamos lembrar as campanhas de solidariedade, dos gestos de empatia e da divisão de dores e afetos?
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