Há um subtexto em Ave, César!, como em todo filme dos irmãos Coen, mas o longa que estreou no mês passado é principalmente uma comédia muito engraçada sobre os bastidores de Hollywood na era de ouro dos grandes estúdios. Joel e Ethan escrevem e dirigem – o crédito é duplo em ambas as funções – e o filme faz a súmula de tudo o que o cinéfilo associa ao regime de estúdio. O executivo poderoso, a rodagem de um épico (religioso?), o galã burro, a estrela vagabunda, a colunista de fofocas, etc. Algumas cenas já nasceram clássicas – Ralph Fiennes como o diretor que se desespera ao tentar extrair uma atuação dramática convincente do caubói cantor; o executivo, Mannix/Josh Brolin, convocando líderes religiosos para avaliar a representação do Cristo na tela; Frances McDormand como a montadora que quase morre sufocada na sala de edição; e Scarlett Johansson como a estrela que, com rabo de sereia, participa da coreografia de um musical aquático no estilo do diretor e coreógrafo Busby Berkeley com a lendária Esther Williams.
Em Berlim, em fevereiro, os Coens foram sinceros com o repórter – “Cannes é melhor. Tem praia, sol, calor.” Mas Ave, César! inaugurou oficialmente a Berlinale deste ano. Dá para rir bastante, mas há o tal subtexto ‘sério’. O astro (George Clooney) é sequestrado por grupo de simpatizantes russos, o que situa o filme dos Coens na vibe das produções que têm abordado o macarthismo e a Guerra Fria. Os Coens, vale lembrar, escreveram o roteiro de Ponte dos Espiões, de Steven Spielberg. E o macarthismo está no centro do ‘plot’ dramático de Trumbo. Apesar disso, Ethan e Joel não tinham resposta para a pergunta mais óbvia de todas – por que essa (nova) obsessão pelo macarthismo? A liberdade de expressão está de novo ameaçada em Hollywood?
“Tínhamos essa história há bastante tempo, mas nenhum roteiro escrito. O roteiro surgiu há pouco, provavelmente, sentimos que, depois de Ponte dos Espiões, havia mais clima para abordar essa história. Todos nós fomos crias da Guerra Fria, num período em que ela começava a desaparecer, mas os anos 1950, a época do macarthismo, foi de muita polarização. Havia a paranoia anticomunista. Os comunistas comiam criancinhas, você sabe. É salutar poder tratar essas coisas com humor.” Houve um Eddie Mannix real e há muito os Coens se interessavam por ele. “Mas o nosso é mais simpático. O verdadeiro (biografado por E.J.Fleming em ‘The Fixers’) era brutal na defesa do estúdio (a Metro).”
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Josh Brolin tem trabalhado com diretores importantes, mas agradece aos céus – “Não sei por que, mas eles (os Coen) gostam de mim. Ethan chegou a dizer que escreveram Mannix para mim. Li o The Fixers, mas tudo o que precisava para compor o personagem estava no texto deles.” Numa cena, Mannix irrita-se com o astro – o Baird Whitlock de George Clooney – e o esbofeteia. “George nunca apanhou tanto na vida. Só para sacanear, eu pedia à dupla para repetir, que não tinha ficado bom, e batia mais.” O próprio Clooney contou. “Tenho trabalhado bastante com os irmãos, mas confesso que eles me desconcertam. Me ligaram dizendo – ‘Escrevemos um papel perfeito para você.’ E era Baird. Depois de ler, entrei em crise. ‘Mas será que eles pensam que sou tão idiota assim?’ Estou de brincadeira. Baird foi delicioso de fazer. Nunca criei um personagem mais ‘tapado’. Só não gostei que Josh (Brolin) tenha abusado de mim e tenha me batido tanto” – e Clooney faz cara de tristinho.
Se Baird, como diz Clooney, é ‘tapado’, Channing Tatum, como o astro de musicais, tem um comportamento no mínimo ambivalente. A dança dele – acrobática – faz lembrar o mítico Gene Kelly, mas os Coens preferem deixar a dúvida. Não esclarecem se o personagem é mesmo inspirado no ator, cantor, bailarino, coreógrafo e diretor. Uma coisa é certa. Ave, César! não é um filme. São vários estilos e filmes num só. “Nesse sentido, precisou de muita elaboração. Fazíamos um musical num dia, um faroeste no outro, um épico religioso adiante e a toda hora estávamos encenando dramas e comédias. Foi como um curso intensivo de cinema”, dizem os Coens.
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