É com a experiência de quase quatro décadas de atuação como professor, bem como de alguém que se dedicou a pensar essa atividade, que o agudense Dionísio Júlio Beskow acompanha a educação. Mais do que isso: é filho de professor, seu Edmundo, já falecido, que foi o primeiro mestre dele. E tem dois irmãos professores, Gilsério e Gilberto, enquanto as irmãs (Lizéria, Lisônia e Veronezia) optaram pela agricultura, em Agudo, onde também reside a mãe, Velita.
Aos 57 anos, Dionísio é natural de Linha dos Pomeranos, na região alta, e a partir de lá seguiu para os estudos, e para iniciar a própria jornada como professor, em 1985, seguindo os passos do pai. É casado com a Clair, com quem tem a filha Eveline, em vias de se formar em Medicina. Graduado em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (Fisc/Unisc), especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, e ainda em Supervisão Escolar, é mestre em Desenvolvimento Regional, e começou doutorado em Epistemologia da História da Ciência, em Buenos Aires. Lecionou nos ensinos municipal, estadual e superior, inclusive pós-graduação, e atualmente é diretor da Escola Estadual de Ensino Fundamental Bruno Agnes, em Santa Cruz do Sul. É autor de três livros. Nessa entrevista, reflete sobre a condição de professor e sobre os desafios da educação.
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Entrevista – Dionísio Júlio Beskow, professor e diretor
- Gazeta – O senhor é filho de professor e tem dois irmãos igualmente professores (em Agudo e Paraíso do Sul). O que essa profissão significa para o senhor e o que foi determinante para que seguisse nessa missão?
Nasci e cresci num ambiente familiar privilegiado. Longe do urbano, na região serrana, considerada o berço pomerano do município de Agudo. Desde pequeno convivia com os alunos da escola em que meu pai “lecionava”. Na época, ele era professor de escola multisseriada, com várias séries numa mesma sala de aula. Participava das brincadeiras e das aulas. Adorava o cheiro de livro novo, esses eram raros. Ao contrário de hoje, na década de 1970 os livros eram todos adquiridos pelos pais, com muita dificuldade. Percebia, na época, que ser professor era ser mais do que um transmissor de conhecimento. Era ser líder comunitário, enfermeiro, conselheiro; a casa dos pais era um lugar em que todos se reuniam e eram recebidos, pastores, padres, agricultores, autoridades públicas. Acho que foi esse contexto que me inspirou a buscar os estudos e me tornar aquilo que sou hoje. - O senhor atua em sala de aula já desde a década de 1980. Como via o ambiente do ensino lá nos primórdios, e como vê ele hoje?
Pensando hoje sobre o começo na década de 1980, tinha uma visão conservadora do que era ensinar e aprender. Utilizava uma prática pedagógica que apenas reproduzia o conhecimento e era assentada na memorização e na cópia. Fortemente influenciado pelo paradigma da ciência cartesiana que influenciava a educação da época. Os alunos eram responsivos, obedientes ao comando do professor, na posição de meros receptores, passivos e copiadores por excelência. Com a redemocratização do país, comecei a perceber que essa prática pedagógica com a ênfase no produto (conteúdo) permitiu que, ingenuamente, formássemos homens silenciados, acríticos e reprodutores do conhecimento alheio. Hoje, o momento é outro, caracteriza-se pelo advento da sociedade digital, do conhecimento, da revolução da informação e da exigência da produção do conhecimento. Esse processo de mudança afetou profundamente a minha prática de professor e, por consequência, exigiu o repensar dos meus papéis e minhas funções na escola. Nesse movimento de mudança, passamos a ter um papel fundamental de articulador e mediador entre o conhecimento elaborado e o conhecimento a ser produzido. - Ser professor quando o senhor começou e ser professor nos dias atuais ainda é a mesma coisa? Ou se tornou uma coisa bem diferente? Nesse caso, diferente em que sentido?
O mundo mudou, e que bom que mudou – com ele, as nossas expectativas e necessidades passaram a ter outras perspectivas. No mundo digital, das redes sociais e também das fake news, não autoriza mais a ser um professor “dador” de aula; passa, necessariamente, a ser um investigador/pesquisador permanente na sua área. Pois a geração de estudantes que temos hoje em sala prefere receber a informação rapidamente de fontes múltiplas e de multimídia; processam imagens, sons, cor e vídeo antes do texto escrito; entram em rede simultaneamente com muitos outros; aprendem o que é relevante, ativo, útil, instantaneamente e agradável. Esse estudante é outro. É um ser de relações, contextualizado, alguém que está no mundo com o mundo; é um ser inconcluso, inacabado em permanente estado de busca, que necessita se educar permanentemente. É um ser singular, diferente e único; por isso, as concepções e práticas pedagógicas conservadoras não funcionam mais. O paradigma educacional mudou! Esse cenário exige muito da gente. E, nós, professores, fomos formados em programas disciplinares e, agora, somos chamados para atuar em um contexto interdisciplinar e complexo. - O que guia o senhor e o que o mobiliza quando está em uma sala de aula?
O que me mobiliza quando estou em sala de aula, do fundamental à pós-graduação, faz parte de um fazer pedagógico que chamo de quatro “domínios” que pautam minha ação: o didático, o social, o digital e o político. Explico: o didático é a maneira de estar aberto a ouvir meus alunos; estar em uma relação constante de aprendizagem com eles; superar os resquícios de professor transmissor do saber; ser pesquisador e interdisciplinar; acreditar na educação pública como instrumento de transformação; ser mediador do processo e dar oportunidades aos alunos de aprenderem de diferentes maneiras. O social é ser ético e estar antenado com seu entorno e com o mundo sem perder a afetividade. No domínio digital temos que dominar as novas tecnologias para educar em rede; incluir as tecnologias atuais em nosso cotidiano e provocar novas descobertas; criar ambientes de aprendizagem e ter conhecimento das mídias. Na esfera política, é estar disposto a gerenciar sua formação; ser um professor que luta pelo que faz e mobiliza seus saberes e poderes para conectar-se com este novo mundo. - Além de atuar em sala de aula, o senhor igualmente assumiu a função de diretor de escola. O que essa experiência ensina a mais para o próprio professor em sua caminhada?
Há 21 anos integro equipes gestoras e aprendi muito com elas, e 15 anos atuando em cursos de gestão escolar. Tento ser um diretor ou líder que envolve os outros em um trabalho conjunto. Tento criar e desenvolver uma visão de responsabilidade compartilhada. Envolvo os integrantes da equipe e professores, a fim de permitir a eles o protagonismo na sua função e no processo de decisão. Ao agir assim, o diretor concorda em mudar de opinião de acordo com a decisão da equipe. Na gestão, tenho funcionários e professores parceiros, comprometidos e extremamente capacitados; trabalhar junto à comunidade escolar é fundamental para desenvolver a visão e os objetivos sociais da escola. Desenvolver ações com uma ótica proativa de “empreendedorismo” comunitário. Acho que com esse estilo e liderança, conseguimos desenvolver o perfil da escola e levá-la ao nível de excelência. Mas ainda há muito por fazer. Ser diretor de escola pública hoje é ter a visão da cultura com a qual convivemos e somos por ela ajustados. - Além de professor, o senhor é igualmente um estudioso sobre o processo de ensino-aprendizagem. Como o senhor situa a educação no Brasil naquilo que competiria a esse sistema, que é formar cidadãos para a vida e para o pleno desempenho profissional?
Enquanto educador, primeiro, tenho que compreender esse contexto em que somos ajustados e conformados a pensar e agir sob uma lógica, que mutila a sensibilidade das pessoas frente à fome, à morte, altera as noções de justo/injusto, das relações interpessoais que foram “coisificadas”. Me questiono como o sistema brasileiro irá proporcionar a formação de cidadãos se há uma década não temos um projeto de Estado para a educação no país? O que percebo, são as redes públicas – municipais e estaduais – tentando imprimir uma concepção empresarial em educação e avaliação, muitas vezes fazendo parte de uma exigência estratégica de organizações, imprensa e bancos. Isto faz parte de um movimento de transplantar para a educação pública e serviços do Estado, formas de gestão empresarial. Então, valoriza-se uma racionalidade técnica e vai se despolitizando a vida social. Por isso, temos em ambas as redes discursos sobre educação originários de institutos e organizações como bancos, Google e grandes empresas, visando uma subordinação da escola pública aos interesses e à lógica da competitividade do mercado financeiro. Aqui entra o trabalho nosso de professor de escola pública, que sofre uma pressão política para que tecnicamente sejamos eficientes e eficazes na “transmissão de saberes, habilidades e competências”, os quais devem ser medidos e quantificados através de provas e testes – avaliações externas, supostamente neutras e objetivas. Assim, também o mesmo sistema permite avaliar a competência do professor com base nos resultados apresentados individualmente por cada aluno. Dentro dessa racionalidade, a gente se pergunta: como formar um cidadão crítico que pode elaborar conhecimento, que interaja com o outro e com o objeto do conhecimento através de habilidades e competências, num sujeito de transformação social? De posse do conhecimento, analisa e julga a realidade e nela intervém, aplicando soluções ao(s) problema(s)? Portanto, não sou avesso a esta racionalidade, mas minha tarefa é questioná-la, para provocar os colegas a fazer uma reflexão crítica mais aprofundada. - Qual papel e que espaço tende a ter a escola no futuro, a curto e médio prazos?
A curto prazo temos a missão urgente de ter uma política pública de Estado para educação que dê conta dos desmontes da escola pública. A aprendizagem dos estudantes está em xeque! Consequência da ausência de uma política pública centralizadora do MEC que tenha o foco na aprendizagem do aluno. Segundo os dados do Inaf – Indicador de Analfabetismo Funcional, 26% da população é plenamente alfabetizada, 27% da população são analfabetos funcionais, 47% da população apresenta um nível de alfabetização básico, apenas 35% das pessoas com Ensino Médio podem ser considerados plenamente alfabetizados e 38% dos brasileiros com formação superior têm nível insuficiente em leitura e escrita. Diante dessa calamidade, urge um pacto para enfrentá-la. O papel da escola pública é não deixar nenhum estudante sem aprender. A escola do presente e do futuro deve se preocupar em cuidar, eu acredito, de quatro momentos: adotar um Planejamento estratégico participativo; qualificar seus professores de maneira vertical e não horizontal e apressado; monitorar a aprendizagem de cada aluno e nunca desistir de nenhum aluno. A mudança não virá por decreto. Nenhuma mudança no professor pode ser baixada por decreto (de fora para dentro). Ela será sempre uma expressão interna (endógena) de cada diretor ou professor. Mudamos porque interiormente queremos mudar. No plano organizacional da escola, a mudança acontece no nível das relações e na qualidade das interações que circulam no ambiente escolar, e quando os professores, alunos, direção e pais encontram-se convencidos de sua importância. - A pandemia intensificou a educação à distância, em diferentes formatos. Como esse processo chegou até o professor? E como está, depois destes dois anos?
Sim, a pandemia acentuou e impulsionou a educação em EAD e o Ensino Híbrido. Foi por restrições dos protocolos sanitários da Covid-19. O que já estava em curso anteriormente era a crise de paradigmas, de modelos. Por isso, a educação já estava em crise, pelos descompassos com os avanços tecnológicos e transformações aceleradas na sociedade. Os paradigmas afetam toda nossa sociedade e, em especial, a educação. O fato é que estes paradigmas não acontecem linearmente, nem têm uma demarcação de tempo para começar ou terminar, mas vão sendo construídos cotidianamente e acabam se interpenetrando e criando novos pressupostos e novos referenciais que caracterizam diferentes posturas na sociedade. Isto levanta muita confusão, negação, posições exacerbadas… A pandemia acelerou esse processo e também escancarou a fragilidade e o sucateamento tecnológico que a escola pública tinha. O fosso era e ainda é enorme. A infraestrutura tecnológica das escolas públicas, em grande parte, era obsoleta, sucateada ou subutilizada, como era a nossa. - O que um professor hoje espera da sociedade, e em particular da comunidade escolar? Qual angústia perpassa o ser professor?
Por um lado, cabe aos formuladores de políticas promover ações – como o ajuste adequado do salário – para valorizar todos profissionais da Educação, isto é, colocar dinheiro no bolso do professor! Para a partir daí monitorar esse profissional em exercício na escola. Como acontece em outros países. Mas, por outro lado, há também maneiras de reconhecer a atuação docente dentro da escola e, eu tenho constatado que é, precisamente dessa valorização que emergem excelentes ideias e projetos interdisciplinares na escola. Todos nós esperamos reconhecimento da comunidade escolar e da sociedade, quando o professor está incentivando à aprendizagem do filho do trabalhador, do microempresário, quando está na condição de mediador e de facilitador dessa aprendizagem e utiliza novas tecnologias com os alunos, ele consegue despertar o interesse na temática. Também aguardamos apoio de todos quando os sentimentos de impotência face aos problemas profissionais e pessoais, bem como a depressão com abatimento físico, mental e emocional se assolam sobre as nossas vidas, com reflexos diretos no trabalho em sala de aula. É angustiante de não corresponder ao usar a tecnologia e a vergonha de errar enquanto se aprende. Fracassar ao preparar o aluno para lidar com a incerteza, com a complexidade na tomada de decisão e ter responsabilidade sobre as decisões tomadas, mais tarde cobradas pela gestão ou familiares.
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