Para se divertir, convém não comparar esta versão de Assassinato no Expresso Oriente à mais famosa das adaptações do romance de Agatha Christie, a de Sidney Lumet em 1974. A de agora, obra do shakespeariano Kenneth Branagh (que também interpreta Hercule Poirot) faz concessões à modernidade. Mas, enfim, o espírito da obra da escritora inglesa está lá.
Claro que Lumet não tinha os recursos visuais agora disponíveis a Branagh. E esse os aproveita com gosto, porém sem abuso. Tanto nos interiores luxuosos do trem, como nas externas, em que o comboio avança em meio à neve, carregando seus ilustres passageiros, o padrão visual é intenso. Impressiona.
Não há overdose de recursos. Eles são usados para dar dimensão sensorial à trama, que inclui uma avalanche de neve e um acidente. Mas o mais interessante se passa entre os personagens e a relação que mantêm com o crime e com o passado de cada um.
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O ambiente reflete um pouco o artificialismo que Christie impõe às suas tramas. Poirot é aquele cérebro absoluto, dono das famosas “pequenas células cinzentas”, que tenta desvendar um crime por artes apenas do raciocínio lógico. Poirot faz parte dessa dinastia ilustre, de Sherlock Holmes, Conan Doyle, Auguste Dupin, de Edgard Alan Poe, passando pelo padre Brown, de Chesterton. A inteligência desvenda o mal e o expõe à fria navalha da lógica.
De tal forma que, para Poirot, todos em princípio são suspeitos para que, por exclusão, ele possa chegar a esse culpado único, que absolverá os outros, pois resume em si o pecado do crime e o expia.
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Esse é o percurso clássico, do qual Agatha Christie se desvia nessa história, como sabem seus leitores e os que viram os filmes anteriores baseados na obra. Será uma boa surpresa para os que não os conhecem.
Nesses termos, podemos desconfiar o que atraiu um ator e diretor como Kenneth Branagh para esse projeto, além do óbvio interesse comercial. Assassinato no Expresso Oriente contém, em seu cerne, um dilema ético bem ao gosto de quem se formou e foi alimentado pela convivência com o texto de Shakespeare. Se o Edward Ratchett de Johnny Depp não esconde sua condição de vilão, ele é incapaz de resumir, em si, todos os males do mundo. Neste mundo moderno, que já espanta Hercule Poirot, culpas e pecados estão divididos de maneira mais democrática. Saímos do mundo das certezas e entramos no do relativismo. A utopia do detetive, separar, pela razão, o bem do mal, já não pode se cumprir, detalhe trágico que dá um toque de grandeza à história.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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