“Serenidade para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras.” A frase escrita sobre a grama do pátio da Comunidade Terapêutica Recomeçar elucida um dos sentimentos de quem chega para residir por um tempo no local, a fim de se libertar do vício de álcool ou drogas. São homens e mulheres que convivem com a dependência química, o alcoolismo ou a dependência cruzada – quando um indivíduo tem mais de um vício ou mais de um tipo de comportamento aditivo ao longo da vida.
Porém, para o público feminino, a condição ainda é considerada um tabu, o que se revela nos baixos índices de procura por tratamento. Agravada pela pandemia de Covid-19, a situação se mostra preocupante no que diz respeito à saúde dessas mulheres, já que elas possuem mais chances de desenvolver doenças graves devido ao uso de álcool, por exemplo.
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“A alegria está na independência, não na dependência”
A professora de inglês Mônica Inês Schuck, de 55 anos, decidiu alimentar a própria saúde e não mais a doença, como ela mesma define. O alcoolismo não chegou na vida dela de forma repentina. O processo é lento, progressivo, e foi aos poucos fazendo-se presente na rotina. Atualmente, confiante e decidida a falar sobre o problema, Mônica faz questão de enfatizar que foi a internação na Comunidade Terapêutica (CT) Recomeçar que a fez “virar a chave”.
Foi ainda na adolescência que Mônica começou a beber. Mais tarde, com aproximadamente 30 anos, o consumo passou a ser diário, em pequenas quantidades. “Hoje eu entendo e consigo ver que talvez o que tenha me levado ao uso foi minha baixíssima autoestima, sempre fui muito tímida. O álcool é desinibidor e quando bebemos, fazemos coisas que a gente normalmente não faz quando estamos de cara limpa. Mas não é algo que começa já em níveis altos”, menciona.
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Em momentos felizes, para comemorar, e tristes, para esquecer. A bebida foi se tornando cada vez mais uma “bengala” para a professora. Foi com a chegada da pandemia e a pausa nas aulas presenciais que a situação se intensificou. “Era um processo que já vinha de antes, mas com a pandemia as questões profissionais ficaram muito paradas. Eu até inventei coisas para fazer, pegava sacos de ração e fazia ecobags.”
A bebida preferida de Mônica sempre foi a cerveja, mas até como forma de tornar o consumo mais barato e também para ter um efeito mais rápido, passou a consumir uma mistura de suco com cachaça. Certo dia, porém, começou a passar mal. “Fui dormir e acordei enjoada, comi uma coisinha e já vomitei, nada parava no estômago.”
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O problema continuou por dias. Uma reunião dos irmãos, no entanto, concluiu que Mônica necessitava de internação. “Meus irmãos decidiram pela internação e no princípio eu aceitei, mas aí eu melhorei, fui para casa e disse que estava curada e que não precisava mais.” Convencida pelo irmão, Mônica foi para o CT Recomeçar. Por si só, ela decidiu que aquele momento em que dava entrada no local seria realmente um reinício. “Ali começou a grande jornada do caminho da felicidade e da libertação. A dependência é o sofrimento. A alegria está na independência, não na dependência. Está na liberdade, não na escravidão”, frisa.
Mônica foi internada no início deste ano e se comprometeu a se entregar para que o tratamento fosse o melhor possível. “Foi espetacular, todas as palestras, atividades. O grande momento, para mim, foi na minha terceira reunião de AA. Eu tremia, falar de mim era difícil. Mas eu levantei, disse meu nome, que sou uma alcoolista e decidi me colocar em recuperação. Esse foi o grande momento, a grande chave que virou porque é importante quando tu verbaliza e assume isso não apenas para si mesma, mas para os outros.”
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O objetivo da professora, agora, é incentivar as pessoas a buscarem o tratamento adequado, seja para tratar a dependência em álcool ou em drogas. Contudo, o foco dela é falar de mulher para mulher. “As mulheres são mais retraídas, elas ajudam os pais, os filhos, as filhas, e às vezes esquecem de se ajudar e também usam o vício como bengala. Eu tive tantas ajudas para me puxar para o barco da recuperação, que agora que eu entrei vou puxar mais gente também, principalmente mais mulheres.”
A questão feminina, para Mônica, deve ser ressaltada, até para desmistificar muito do que se pensa sobre o alcoolismo em mulheres. “Já é uma doença estigmatizada e para a mulher é muito pior. O homem vai no bar, na venda, a mulher não, ela compra e leva para casa para beber sozinha. E, às vezes, é difícil até para a família ver. Muitas vezes, quando os familiares enxergam, já está muito avançado. Também precisamos desmistificar o que é uma internação, foi algo que eu fiz questão de colocar, tem gente que acha que isso aqui é uma prisão, e não é. Nós entramos pela porta da frente e saímos pela porta da frente”, diz Mônica.
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80% homens e 20% mulheres
A enfermeira Michele Maschio, do Centro de Atendimento Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps AD), explica que o atendimento a dependentes é feito inicialmente por livre demanda. “É realizada uma triagem, onde são coletados dados sobre a história do paciente, suas necessidades e expectativas em relação ao tratamento.”
A equipe do Caps AD é multidisciplinar, com enfermeiros, técnicos em enfermagem, médico clínico e psiquiatra, psicólogos, assistente social, estagiários de psicologia, auxiliar de serviços gerais e residente de psicologia. Além disso, o serviço conta com grupos motivacionais que são a “porta de entrada” ao Caps.
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De acordo com Michele, após a triagem, o profissional já faz o planejamento do tratamento, de modo que a participação nos grupos é de grande importância. “O Caps AD conta com sete vagas masculinas e duas vagas femininas para o acolhimento noturno, onde o paciente fica por sua livre e espontânea vontade. Através do sistema, ainda é possível solicitar internações voluntárias e involuntárias em hospitais de referência em saúde mental. Também há a possibilidade de encaminhamento a comunidades terapêuticas, onde o paciente pode ficar até nove meses em tratamento”, comenta.
A enfermeira acrescenta que 80% dos pacientes do Caps AD são homens e o restante, mulheres. “Atualmente, temos 11 pacientes frequentando o grupo feminino.”
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As mulheres e o alcoolismo
A última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), divulgada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), constatou que os brasileiros estão consumindo mais bebidas alcoólicas, alta que é puxada pelas brasileiras. Das entrevistadas pelo levantamento, 17% das mulheres adultas afirmaram ter bebido uma vez ou mais por semana em 2019. O índice é 4,1 pontos percentuais maior que os 12,9% registrados em 2013.
A variação não foi tão significativa entre os homens: 36,3% para 37,1%, em 2013 e 2019, respectivamente. No comparativo por faixa etária de ambos os sexos, a maior proporção de pessoas que beberam pelo menos uma vez na semana foi de adultos com 25 a 39 anos (31,5%), seguida de perto por jovens de 18 a 24 anos (30,4%).
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Segundo sinaliza a pesquisa, o consumo de bebida alcoólica é um dos maiores fatores de risco para a população, sendo considerado uma das principais causas de doenças crônicas não transmissíveis, bem como dos acidentes e violências. Além disso, mesmo sem dependência, mulheres que consomem mais gramas de álcool por dia têm maior risco de desenvolver doenças como câncer de mama, osteoporose, hipertensão arterial, acidente vascular cerebral (AVC), cirrose e esteatose hepática (gordura no fígado).
A pesquisa também levou em consideração a quantidade de pessoas diagnosticadas com depressão. Segundo a PNS, 10,2% das pessoas de 18 anos ou mais receberam diagnóstico de depressão por profissional de saúde mental em 2019 contra 7,6% em 2013. Ao todo, 16,3 milhões de pessoas têm depressão diagnosticada. As mulheres lideram a prevalência: 14,7%, contra 5,1% dos homens.
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Um lugar para recomeçar
A Comunidade Terapêutica (CT) Recomeçar, situada no Bairro Aliança, em Santa Cruz do Sul, começou as atividades em 1994, quando ainda era chamada de Unidade de Tratamento de Recuperação do Alcoolismo do Vale do Rio Pardo (Utravarp). Em 2009, a unidade transformou-se em comunidade terapêutica. Atualmente, 90% dos residentes são oriundos do encaminhamento do Caps AD, conforme o administrador da CT, Roberto Moura. O restante são residentes particulares.
A Recomeçar conta com um quadro de 18 funcionários, entre psiquiatra, psicólogo, assistente social, enfermeira, técnico de enfermagem, nutricionista, cozinheira e monitores. A maioria dos residentes (70%) são dependentes de drogas e o restante (30%) são alcoolistas.
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Moura salienta que a comunidade funciona como uma grande família, onde todos colaboram para o bom funcionamento do local. “O residente tem que participar das atividades, dos serviços da limpeza, dos grupos de trabalho, dos seminários.” Nos horários livres, é possível aproveitar a bela área verde da qual a CT dispõe. “Eles têm tempo livre das 17 horas às 19 horas, então podem usar academia, cancha de bocha e trabalhar na horta, na qual muitos gostam de mexer. Dela colhemos algumas coisas que eles mesmos produzem”, salienta.
A maioria dos residentes é formada por homens. “A mulher não se expõe muito porque a família tem mais vergonha. O pai bebe, tudo bem. Mas a mulher é mais reservada, dificilmente tu vê uma mulher bebendo em boteco”, observa Moura.
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O psicólogo Antônio João Weber atua na Comunidade Terapêutica Recomeçar desde o início. Segundo ele, a dependência do álcool ou dependência química causa repercussões físicas, sociais, morais e psicológicas. “No meu trabalho, realizo atendimentos individuais, grupais e seminários. Para o dependente, é importante prestar suporte emocional para que possa estacionar sua doença através de uma reformulação de vida.”
Weber destaca que, para a mulher, é mais difícil devido a estigmas sociais e culturais. “Para a sociedade é muito mais vergonhoso ser alcoolista ou dependente química, embora a doença seja igual para um homem ou para uma mulher.”
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Durante a pandemia, a CT parou de receber as visitas, mas o atendimento seguiu normal. Uma sala foi utilizada como ala de isolamento para quando algum residente apresentasse sintomas de Covid-19. Moura, administrador da Recomeçar, observa que a comunidade não tem vínculos com igrejas ou religiões, mas a espiritualidade é trabalhada com os residentes.
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