Demônios da Garoa: quase 80 anos sem deixar o samba morrer

O filho único que precisa pegar o último trem para Jaçanã pois a mãe não dorme enquanto ele não chega em casa, os três homens que ficam sem teto após serem expulsos de um palacete assobradado que seria demolido e transformado em alto edifício, os convidados de uma festa no Brás que dão com a cara na porta quando chegam ao local. Bem familiares para quase todo mundo, essas histórias têm algo em comum: foram todas contadas – e cantadas – pelos Demônios da Garoa, nome fundamental do samba e da cultura brasileira. Prestes a completar 80 anos ininterruptos em atividade, o grupo retorna a Santa Cruz nesta sexta-feira, 1º.

As histórias, na verdade, têm mais em comum. Todas se passam em São Paulo, berço do conjunto criado em 1943 e que foi responsável por apresentar o samba paulista ao País, e são espécies de crônicas recheadas de gírias, bom humor e melodia. E todas têm a assinatura do icônico Adoniran Barbosa, com quem o Demônios tiveram uma das parcerias mais ricas da história da música. Dali saíram Samba do Arnesto, Saudosa Maloca, Iracema, Tiro ao Álvaro, As Mariposas e, claro, Trem das Onze.

Atual líder do grupo, Sérgio Rosa viu Trem das Onze nascer. Filho de um dos fundadores do Demônios, Arnaldo Rosa, acompanhava os ensaios, que aconteciam na casa da avó, onde também conheceu Adoniran. Juntou-se ao grupo em 1981, inaugurando a segunda geração. O filho dele, o pandeirista Ricardinho, integra, atualmente, a terceira. A formação inclui ainda os violonistas Dedé Paraízo e Everson Pessoa.

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Em entrevista por telefone à Gazeta do Sul, Sérgio contou anedotas como a do verdadeiro Arnesto – um colega de Adoniran chamado Ernesto, a quem ele disse que o nome, ligeiramente adaptado, daria um samba, e emendou: “Você ‘aduvida?’” – e a origem do nome do grupo, cujo responsável é um dos grandes mistérios do samba. Ainda revelou que, mesmo octogenário, o grupo não pensa em parar: prepara uma grande turnê para o ano que vem e tem a pretensão de se tornar o primeiro conjunto do mundo a completar 100 anos na estrada. Em Santa Cruz, os “endiabrados” da terra da garoa, cuja ginga é mais poderosa que bala de carabina e veneno estricnina, prometem desfilar clássicos. Deixar o samba morrer? “De jeito nenhum!”, exclamou Sérgio. E você, “aduvida”?

Confira a entrevista completa:

  • O Demônios apresentou ao Brasil o samba feito em São Paulo. Qual era a diferença?
    O Demônios é a cara de São Paulo. É intérprete de uma música que é considerada um hino de São Paulo, Trem das Onze, que já foi gravada em 19 idiomas e foi declarada o maior samba de todos os tempos. Mas não temos esse bairrismo que as pessoas colocam. Só interpretamos o nosso samba, que é mais cadenciado, mais melodioso, enquanto o restante do Brasil faz um samba mais percussivo. O samba do Demônios é muito característico.
  • O teu pai, Arnaldo Rosa, foi um dos fundadores do grupo. Tu, portanto, literalmente nasceste no meio do samba?
    Sim, eu acompanho desde criança. Quando eu tinha 5 ou 6 anos de idade, o Demônios ensaiava na casa da minha avó. E eu acompanhava sempre os ensaios. Realmente, eu vivi boa parte da criação dos grandes sucessos. Quando meu tio Cláudio saiu, meu pai me convidou para fazer parte do grupo. E estou lá, desde 1981.
  • Viste, então, muitos dos clássicos nascerem?
    Com certeza, vi nascer muitas músicas do Demônios. Trem das Onze, Ói Nóis Aqui Traveis, eu vi essas músicas serem elaboradas. Muitas eram trazidas pelo Adoniran Barbosa, que foi um dos maiores parceiros do grupo. E essa, aliás, foi uma das maiores parcerias da música popular brasileira.
  • Como era a relação do Adoniran com o Demônios? Ele não era integrante do grupo?
    Ele trazia as músicas, mas nunca participou do Demônios. Ele vinha, mostrava a letra e a melodia e dizia: “Vocês se virem e vão gravar”. Em 1951, ele trouxe um primeiro samba chamado Malvina. O Demônios gravou e foi campeão do Carnaval de São Paulo. Em 1951, ele trouxe um segundo samba, Joga a Chave, e o Demônios foi bicampeão. Daí em 1954, o Demônios gravou Saudosa Maloca, que o Adoniran já tinha gravado em 1949 com o Regional de Serginho e meu pai gostava. Mas o Demônios gravou de um jeito diferente. Foram eles que colocaram o “dim-dim donde” e a introdução. Assim como as introduções de Trem das Onze e do Samba do Arnesto também foram criação do Demônios.
  • Chegaste a conhecer o Adoniran?
    Conheci ele quando eu ainda não era do grupo. Foi exatamente quando ele estava levando algumas músicas e o Demônios estava ensaiando. Eu acompanhava aquele ensaio. Mas não tive mais contato. Eu entrei em 1981 e ele faleceu em 1982.
  • Há algumas histórias interessantes. Por exemplo: consta que o Arnesto existiu de verdade.
    Sim, ele existiu, é coisa verídica. O Adoniran e o Seu Ernesto trabalhavam juntos em uma emissora de rádio. Um dia eles estavam saindo, o Seu Ernesto deixou cair um cartão, o Adoniran pegou e leu: “Arnesto Paulelli”. E ele falou: “Mas Adoniran, o meu nome é Ernesto, não Arnesto”. E o Adoniran: “Ernesto não dá samba, Arnesto dá. Você ‘aduvida’?”. E aí fez o samba.
  • Já ouvi falar também que o nome Demônios da Garoa foi sugerido por um fã.
    Sim. O conjunto se chamava Grupo do Luar quando participou do programa de calouros da Rádio Bandeirantes e ficou em primeiro lugar. Mas nessa época eles tinham 14 ou 15 anos de idade e, como qualquer garotada, faziam bagunça, traquinagem. Daí eles começaram a participar do programa do locutor Vicente Leporace, que apresentava eles como “os endiabrados do Grupo do Luar”. Mas o Vicente achava que o nome era antirradiofônico. Nenhum conjunto da época tinha “grupo” no nome. Então, foi feito um concurso e um ouvinte sugeriu Demônios da Garoa. “Demônios” porque eles eram apresentados como “endiabrados” e “garoa” porque São Paulo era, na época, a terra da garoa. Até hoje não se sabe quem é esse iluminado.
  • Outra característica marcante do Demônios é que os sambas sempre foram muito divertidos, diferente, por exemplo, do samba-canção clássico, que é melancólico.
    O Adoniran era um cara simplório e gostava muito de retratar o cotidiano do paulistano. O que achava engraçado, transformava em letra e música. A partir do Saudosa Maloca e do Samba do Arnesto, ele passou a mudar a forma de compor. Deu muito certo a brincadeira, a coisa jocosa, aquilo de falar no meio da música. Isso caiu na boca do povo e, até hoje, é impressionante. Às vezes vemos crianças de 4 ou 5 anos cantando coisas que foram compostas há 60 anos. São coisas que realmente marcaram a música popular brasileira.
  • E vocês conseguem ainda hoje chegar ao público jovem?
    Vamos completar 80 anos de existência no ano que vem. Boa parte daquele pessoal que acompanhou o Demônios lá nos anos 50 já está no “andar de cima”. Então, se não agradássemos aos jovens, o grupo já teria terminado. Às vezes vemos, nos shows, o avô, o filho e o neto juntos, três gerações cantando as músicas.
  • Como avalia o atual momento do samba? Acha que ainda há coisas boas surgindo?
    Sim, tem muita gente boa fazendo samba. É claro que apareceram muitos gêneros, então o samba dá uma recuada, mas depois volta e toma o lugar que lhe é de direito. Não temos nada contra outros gêneros, mas também vemos muita inversão de valores. Infelizmente, não temos mais um Tom Jobim, um Vinicius de Moraes, um Adoniran, um Lupicínio Rodrigues, grandes compositores que deixaram músicas que vão perdurar por muitos anos. Hoje as coisas são muito descartáveis, muito momentâneas.
  • Em oito décadas, certamente o grupo nunca havia passado por algo parecido com a pandemia. E vocês ainda perderam um integrante para a Covid, certo?
    Foram dois anos muito difíceis. A classe musical foi a primeira a parar de trabalhar e está sendo a última a retornar. Nós perdemos dois integrantes: o Izael Caldeira, que era um grande cantor, e o Odilon Mário Cardoso, que foi nosso empresário por 28 anos. Estamos nos reerguendo e fazendo o máximo possível para suprir essa falta. Graças a Deus, essa “desgraceira” está acabando.
  • Com tantos anos de estrada, ainda fazem projetos?
    Acabamos de gravar um samba novo, Tá na Hora do Show, com participação do Xande de Pilares. Já está tocando nas rádios de São Paulo. Temos o projeto dos 80 anos no ano que vem, quando vamos fazer uma grande turnê por todo o Brasil. E temos um grande projeto que é o Demônios da Garoa centenário. Queremos ser o único grupo do mundo a completar cem anos ininterruptos em atividade.
  • Então, se depender de vocês, não vão deixar o samba morrer?
    De jeito nenhum! Inclusive, essa música (Não Deixe o Samba Morrer) faz parte do nosso repertório.

Serviço

  • O quê: show com Demônios da Garoa
  • Quando: sexta-feira, 1º de abril
  • Onde: auditório central da Unisc
  • Horário: 20h30 (abertura às 19h30 com Bako Lopes)
  • Ingressos: R$ 80,00 (meia), R$ 80,00 (solidário, com um quilo de alimento no dia do show) e R$ 160,00 (inteiro). À venda na Ótica Kothe (matriz), Lojas Benoit e Farmácia Ultramed (matriz)

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Carina Weber

Carina Hörbe Weber, de 37 anos, é natural de Cachoeira do Sul. É formada em Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e mestre em Desenvolvimento Regional pela mesma instituição. Iniciou carreira profissional em Cachoeira do Sul com experiência em assessoria de comunicação em um clube da cidade e na produção e apresentação de programas em emissora de rádio local, durante a graduação. Após formada, se dedicou à Academia por dois anos em curso de Mestrado como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Teve a oportunidade de exercitar a docência em estágio proporcionado pelo curso. Após a conclusão do Mestrado retornou ao mercado de trabalho. Por dez anos atuou como assessora de comunicação em uma organização sindical. No ofício desempenhou várias funções, dentre elas: produção de textos, apresentação e produção de programa de rádio, produção de textos e alimentação de conteúdo de site institucional, protocolos e comunicação interna. Há dois anos trabalha como repórter multimídia na Gazeta Grupo de Comunicações, tendo a oportunidade de produzir e apresentar programa em vídeo diário.

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