É comum dizer que, no Brasil, o racismo é velado, disfarçado. Que o brasileiro teria “vergonha” de externar publicamente esse tipo de conduta, pois vai contra o seu famoso caráter “cordial”. Será mesmo? A forma aberta com que muitos têm revelado esse preconceito recentemente, por vezes com violência, destoa do discurso. Nos últimos dias, pelo menos três casos tiveram ampla repercussão na mídia.
Vejamos: em 7 de agosto, sexta-feira, um homem negro estava com a filha de 15 anos em uma lanchonete do McDonald’s, em Brasília. De repente, Ricardo Viana foi empurrado e xingado de “macaco” por um desconhecido, aparentemente embriagado, que avisou ainda que iria “pegá-lo”. Não houve nenhuma discussão prévia, o agressor sequer conhecia a vítima. Se conhecesse, saberia que Viana é delegado de polícia e evitaria, assim, receber voz de prisão – que foi exatamente o que aconteceu. Ao falar sobre o caso, o delegado, sem esconder sua perturbação diante de uma violência tão irracional, questionou: “De onde vem tanto ódio?”. Questão aberta.
E tivemos os dois Matheus. Na quinta-feira, dia 6, Matheus Fernandes, 18 anos, teve uma arma apontada na sua direção por seguranças de uma loja em um shopping do Rio de Janeiro, após tentar trocar um relógio que comprara de presente para o pai. Os dois agressores, que também são policiais militares, olharam para ele e enxergaram um ladrão. Agora responderão por racismo e abuso de autoridade, de acordo com a Polícia Civil. Antes disso, em 31 de julho, o motoboy Matheus Pires foi insultado pelo morador de um condomínio em São Paulo, por atrasar a entrega do pedido de comida. O vídeo grotesco que registra o episódio caiu nas redes no dia 7 de agosto.
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Em nenhuma dessas situações, os agressores tiveram constrangimento em agir diante de várias testemunhas. Se alguma vez os racistas já tiveram “vergonha” no Brasil, parece que a perderam. Ou, simplesmente, as onipresentes câmeras dos celulares passaram a destacar algo que não vinha a público com tanta frequência, tanta insistência. Algo que é exceção? Algo irracional? Não para o jurista e filósofo Silvio Luiz de Almeida, autor do livro O que é racismo estrutural?, lançado em 2018. “O racismo é uma forma de racionalidade, uma forma de normalização, de compreensão das relações”, afirma.
“Raça” como conceito biológico não existe, mas as implicações sociais dessa ideia sempre foram muito concretas. Por quatro séculos, ela justificou o tráfico negreiro que fez girar a economia brasileira. A escravidão fazia parte da ordem, ela era a ordem. “Raça” é um marcador social de diferença que constrói hierarquias e estabelece discriminações, como já disse a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Uma discriminação “estrutural”, como repetem Almeida e a filósofa Djamila Ribeiro, porque está inserida na dinâmica social. Longe de ser uma anomalia, é uma das engrenagens da máquina.
E enquanto a engrenagem vai rodando, habituamo-nos até a rir dessas coisas. Adilson José Moreira, professor de Direito da USP, cunhou a expressão “racismo recreativo” para designar as formas mais brandas e comuns do preconceito no Brasil, as piadas. Elas têm o mesmo papel que ofensas e injúrias: institucionalizar um inferior social e delimitar qual é o espaço que lhe cabe. “Para muitos brasileiros, o humor é uma forma aceitável de racismo. Essas piadas têm um propósito: afirmar que os negros são inferiores e devem ocupar um lugar subalterno na sociedade”, frisa. De onde vem tanto desprezo?
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E para onde vamos com essa carga de bestialidade nas costas? Para que futuro? Martin Luther King dizia que “o racismo é o cão dos infernos seguindo os passos da civilização”. Até quando?