Lembro que em 2021 começava um período de intensa estiagem no sul do Brasil. Na ocasião, o Rio Pardinho praticamente secou, espalhando aflições de toda ordem a milhares de pessoas, para além do sofrimento derivado da Covid. O rio não fluía mais, havia poças isoladas das quais eventualmente escorriam alguns filetes sem esperança de vida.
Toda vez que via essa paisagem desoladora, lembrava-me do poema “Rios sem discurso”, de João Cabral de Melo Neto. Permitindo diversas leituras, lembra, por exemplo, que na normalidade um rio flui como um discurso, uma conversa estendida, mas que se corta quando a seca se aproxima, a água se quebra em pedaços, em poças de água, em água paralítica. E, para se refazer, vai precisar de muito fio de água, o que não se faz de vez, a não ser que a explosão de uma cheia lhe imponha súbita outra linguagem, rompendo toda ordem natural de recomeçar a sua vida.
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Tudo permitia estabilidade e paz ao longo do rio Pardinho nos últimos meses. Se não havia abundância de água em seu leito, também não existia ameaça de carência ou de seca. Além disso, o pequeno rio cumpria, de forma silenciosa, a magnífica missão de ornamentar uma paisagem bucólica de rara beleza. Provavelmente de tanto tê-lo presente, de conviver com ele, muitas pessoas até o esqueciam, pois morava como mais um coração dentro do peito de cada um.
As surpreendentes sirenes da madrugada acordaram o povo, que foi conclamado a abandonar urgentemente suas casas, pois o longo sono de décadas se transformaria em pesadelo em questão de poucos instantes, as torrentes desceriam do céu. E, como em Sodoma e Gomorra, melhor seria não olhar para trás, mas correr, subir, deixar as esperanças para depois. Sem saber o que estava acontecendo, as pessoas, atordoadas, perambulavam como o José, de Carlos Drummond de Andrade: José, para onde?
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Sem demora, cai a luz, cortam-se as comunicações, caem as pontes e os pontilhões, fecham-se as estradas, instala-se o caos, o medo desce sobre a pequena cidade, seus arredores e, logo se saberá, estenderá seu manto de dor a milhões de gaúchos mais uma vez abatidos pela fúria das águas, pelas torrentes avassaladoras.
As outras dores virão depois: a centenária casa dos avós destruída, os apetrechos arruinados, o carro mergulhado na lama, a loja imunda, a creche revirada, as doces lembranças das fotografias apagadas para sempre. Só restam braços para abraços, olhos para silenciosos olhares e fontes para as lágrimas restantes.
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Há muitas lições expostas como fraturas. Líderes mundiais responsáveis, cientistas, ambientalistas vêm sendo massacrados por suas teimosas insistências. Há pouco, a nossa Assembleia Legislativa liberou a substituição das Áreas de Preservação Permanente, pobres redutos de resistência, por implantação de açudes. Um célebre senador gaúcho diz enfaticamente não acreditar em aquecimento global, certamente entendendo-o como mais uma conversinha da esquerda.
E assim, de negação em negação, vamos tecendo a próxima catástrofe. O animal da fauna mais resistente a mudanças é o ser humano. No entanto, como escreveu Albert Camus, saúde é a capacidade de o ser humano promover o esquecimento. Se não fosse assim, dificilmente sairíamos do vale de lágrimas em que por ora nos encontramos mergulhados. Como diz outro poema: agora, o que nos cabe é ter enxutos os olhos e a intenção de madrugar.
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