Prêmio Nobel de Literatura em 2003, o escritor sul-africano J. M. Coetzee, 83 anos, cresceu junto com o Apartheid, o regime segregacionista instalado em 1948 naquele país. Então uma criança branca, ele percebeu desde cedo como os negros deviam ser encarados e tratados.
Em uma passagem do livro autobiográfico Infância, o autor lembra de um episódio emblemático na casa de parentes. Os familiares haviam sido visitados por um homem negro. “Depois que ele sai”, escreve Coetzee, “há uma discussão sobre o que fazer com a xícara de chá. O costume, ao que parece, é que quando uma pessoa de cor bebe numa xícara, ela tem de ser quebrada. Ele ficou surpreso que a família da mãe, que não acredita em nada, acredite nisso. No entanto, afinal, a mãe apenas lava a xícara com alvejante.”
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Mesmo aos olhos infantis do narrador, o absurdo da situação é flagrante. Como é possível, em nome de um suposto status de superioridade, acreditar numa tolice dessas?
Mas o racismo é antigo como as pedras e, ao que parece, tem a consistência das pedras: é impenetrável. Inacessível à lógica e à razoabilidade. Em certos casos, dissimulado; em outros, exibido com arrogância. Pouco importa que no Brasil, por exemplo, seja considerado um crime. Aqui em Santa Cruz, a mulher que ofendeu um funcionário do Miller Supermercados nesta semana, um rapaz de 16 anos, não se importou. Por que ela se preocuparia com um “negro sujo”? O caso foi parar na Delegacia de Polícia, como deve ser.
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Tratar alguém diferente como inferior ou subumano impõe-se como necessidade para alguns. Como bem apontou a escritora Toni Morrison (Nobel de Literatura em 1993) no livro de ensaios A origem dos outros, “parece uma tentativa desesperada de confirmar a si mesmo como normal”.
O racismo também se manifesta de formas misteriosas. Nos últimos 30 dias, uma influenciadora digital “cristã”, um padre católico e o prefeito de Balneário Barra do Sul (SC), Valdemar Rocha, bateram na mesma tecla: as enchentes no RS foram um castigo divino, porque os gaúchos frequentam terreiros de umbanda demais. Mudanças climáticas? Nada. Essas coisas nem existem.
Só resta questionar, à maneira de Coetzee: como é possível acreditar numa tolice dessas?
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