Dona Marquesa continuava ali parada. Quieta, sorumbática, calada, reconcentrada. O cenho franzido e perplexo traduzia tudo o que sentia: não mais entendia as pessoas. “Aliás não eram as pessoas”, pensou. Era ela mesma. “Eu mesma não me entendo mais”. Sentia-se cada vez mais isolada e sozinha, como se quisesse um cantinho só seu. Um esconderijo.
A música alta e enjoada. As pessoas eufóricas, transtornadas. A filha convidou para irem juntas comprar alguma coisa. Dona Marquesa ficou olhando. De primeiro não reconheceu a própria filha que estava agitada, com uma pressa danada para não sei o quê. No final foram juntas. Claro que Dona Marquesa foi contrariada, arrastada. Acompanhava por obrigação.
Mas, rememorando toda a situação, vinha acontecendo que Dona Marquesa há muito tempo não mais achava tanta graça nas coisas, nas pessoas e nos seus assuntos. Realmente, andava bem mais calada nos últimos anos. Mas não que estivesse se sentindo mal ou com algum problema fora do comum. No fundo não sabia bem o que dizer. Talvez fossem os pesos que os anos deixam sobre as costas. Ou talvez nem fosse isso. Talvez os olhos passassem a enxergar as coisas de modo diferente e isto nos tornasse mais tristonhos e pensativos. Em todo o caso, tinha uma mudança, talvez estivesse encarando as coisas com uma maior clareza e serenidade. “É que o tempo ensina”, pensou Dona Marquesa.
E o tempo é até traiçoeiro! Assim, dessa maneira, lento e quietinho, vai aos poucos retorcendo os ossos, colocando dores aqui e ali, pesos nas pernas, pedras nos rins, rangeres nas juntas, a vista vai enfraquecendo e a gente nem percebe direito ou faz de conta que não vê. Mas quando vê já está feito.
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E falar a verdade, é que Dona Marquesa passara a observar e sentir todas estas mudanças da velhice e aos poucos ia concluindo que a maioria destas coisas da vida não eram como sempre achava ou como os outros acreditavam ser. Tudo era muito pior! Pelo menos, assim passou a concluir. Conclusões pessoais. E percebeu também que da verdade, de verdade, ninguém queria saber. Só via quem tinha que ver e aí já era tarde, fica-se sozinho. Cada um com sua verdade! Ninguém quer escutar sobre o quanto doem as juntas! “Se tem que ir junto, pelo menos poderiam caminhar mais devagar!”, por vezes resmungava indignada.
Nada a fazer. O jeito era ficar quieta e ir junto com os filhos fazer as compras de final de ano. E caminhando ligeiro, a trote. Castigo! “Porque não se acalmam e param com esta folia toda?” Mas fazer o quê?! Bem lá no fundo passou a ter um pensamento estranho: passou a achar que estava sobrando. Não se entendia mais com “aquela gente”. Contudo, ficava triste: “Afinal de contas é minha família e eu estou querendo ficar longe deles!?”
Dona Marquesa não se dava conta, mas tinha adentrado num mundo à parte, um rumo somente seu. No início ficou até com medo e quis achar o caminho de volta. Mas não achou em si forças e logo descobriu que não mais tinha como voltar. No fundo não entendia o que estava acontecendo. Tinha perdido o fio da meada. Ainda resistiu ou tentou resistir, mas era tarde. Estava vencida. Era melhor deixar acontecer.
Marquesa foi conduzida, gentilmente, para o afastamento de tudo. Longe do ano novo, das correrias, dos filhos. Netos? Não, não mais os reconhecia.
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Dia desses, dona Marquesa olhou para a filha mais velha com um olhar surpreso e alegre. Abraçou-a! Declarou estar se sentindo muito alegre por reencontrar a amiga de tantos anos, colega do colegial. “Ah, Gertrudes! Quanto tempo!” e passou a lembrar de quantas coisas fizeram juntas! Foi logo perguntando se Gertrudes ainda estava de namoro com o Amâncio. (É verdade que Marquesa também tinha olhos para ele e sempre foi muito enciumada…). Mas logo em seguida lembrou que depois a Gertrudes namorou o Lourenço e casou com ele. Pediu desculpas! Contou para a amiga Gertrudes que tinha se casado com o Getúlio, mas que por muitos anos guardou no coração o Amâncio e novamente abraçou a filha. -“Minha querida amiga Gertrudes!”.
A filha ficou apavorada! “Gertrudes?” Sentou-se e chorou. Mas compreendeu tudo em poucos minutos. Abraçou a mãe. Sim! Nada a fazer! O tempo havia chegado. Chegou até o cérebro da mãe e como um verme o estava devorando!
Ah, este tempo! Termina com quase tudo e sempre acaba chegando por mais que demore! Contudo, o maldito até parece ter um lado bondoso, até chega a consolar quando nos tira as memórias do hoje e nos deixa só com as lembranças boas do passado! Afinal de contas, Dona Marquesa novamente sorria, por horas a fio tinha novamente um olhar alegre e brejeiro. E, por vezes gargalhava à larga, contando uma coisa ou outra, ou reconhecendo nos filhos e netos velhos conhecidos seus, companheiros da infância e juventude. Os filhos, calados, sorriam um sorriso triste. Nada mais tinham a fazer!
– “Ah! Minha infância, me lembro de tudo como se fosse hoje!”, contava Dona Marquesa. “Cada final de ano nos reuníamos na casa do vovô Fagundes. Todos os primos e primas vinham. As charretes iam chegando, os cavalos bufando de cansados da viagem. Tudo era festa! Tochas e lampiões por toda a parte! Que alegria! Isso sim que era Feliz Ano Novo! Mas depois que fui crescendo e me casei, estas coisas foram se perdendo…”
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Em outros momentos a lucidez reemergia e Dona Marquesa era a mulher de sempre, mas logo, em poucos instantes novamente a memória se confundia e se embrulhava.
Enfim, na noite da festa, sentaram Dona Marquesa no lugar que ocupava solenemente há anos, como a mais velha do clã. Um silêncio profundo e expectante se fez! Dona Marquesa ficou calada. Todos os filhos e netos ali presentes olhavam consternados.
Percebendo o silêncio e olhando ao redor, Dona Marquesa sorriu. Num cartaz com letras grandes e coloridas ao fundo da sala grande, conseguiu se localizar no tempo: “Ano Novo”. Sorriu balançando afirmativamente a cabeça. Pensou um pouco e com um gesto cerimonioso pediu a atenção de todos. Iria falar. Do silêncio surgiu um farfalhar e alvoroço se fez. Logo todos eram ouvidos e atentos aguardavam. No olhar de cada um dos presentes a esperança fez aparecer ainda um resto de alegria. Uma última centelha mágica que heroicamente ainda tenta negar a realidade da demência incrustrada numa mente que sempre fora brilhante, esperta, atenta e que tinha sido o esteio de toda aquela família nos últimos anos.
Contudo, este foi o último discurso de Ano Novo de Dona Marquesa:
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– “Meus queridos, vamos aproveitar e comemorar, meus queridos! As mesas estão postas e fartas! Só não tomem ponche demais!” Parou, percorreu solenemente toda a plateia com um olhar bondoso e sorridente. Depois tomou fôlego e continuou: “Pois bem, prestem atenção! Os anos passam e logo cada um de nós tomará o seu rumo, terá a sua família e pode o destino determinar que nunca mais veremos uns aos outros. Portanto, enquanto as forças da boa saúde estiverem com cada um de nós, sejamos firmes, inteiros e livres! Aproveitemos cada momento de nossas vidas! Esta vida é feita de instantes, de sonhos e esperanças e nada mais! Continuemos sendo bons amigos, honestos e verdadeiros! Amemos a nós mesmos e as nossas famílias, aos amigos e a todos os seres de bem. Os anos passam e acabam por mostrar que todas as coisas e todos nós somos efêmeros e o que fica marcado no coração de cada um de nós para toda a eternidade é o que foi feito com amor! Transmitamos para as nossas futuras gerações o amor e a justiça pois são estes os bens maiores desta vida e nunca desistamos dos nossos ideais! Sempre com a face serena, horada e repleta de coragem enfrentemos os infortúnios da vida! Como líder e oradora desta turma de formandos, amo a cada um de vocês do fundo do meu coração! Por favor, louvemos a nomeação dos formandos: Adamatilda, Aureliano, Eucládia, Gertrudes, Iracema, Maria Hermínia, Rodolfo …”, e assim Marquesa nomeou um por um e agradeceu a presença dos demais colegas de internato e do colegial, amigos de sua juventude, os quais reconhecia estarem ali naquele momento. Depois finalizou:
“Vamos comemorar a nossa conquista! E a todos, um Feliz Ano-Novo e aproveitem a vida e suas oportunidades”!
Filhos, netos, e todos se abraçaram: Feliz Ano-Novo!
A todos, um Feliz Ano Novo!
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Paulo Assmann
Escritor, psiquiatra, psicoterapeuta
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