Cultura e Lazer

“Crises climáticas passarão a ser a nossa professora”, diz jornalista britânica

O subcontinente indiano é uma das mais magnéticas regiões do mundo atual. Tendo a Índia como referência, por ser agora a nação mais populosa do planeta, com seus 1,452 bilhão de habitantes, essa área, composta ainda por seus vizinhos Paquistão, Bangladesh, Nepal e Butão, seguramente ditará os rumos da humanidade.

A jornalista e escritora inglesa Alice Albinia detalha em livro sua jornada ao longo do Indo

E é a um passeio ao cerne histórico desse imenso território que convida um livro da jornalista e escritora britânica Alice Albinia, de 46 anos. Impérios do Indo foi lançado no Brasil pela editora Âyiné, em tradução de Lucas Sant’Anna, com 492 páginas. A autora descreve a viagem que fez ao longo do Rio Indo, que deu nome à Índia e a todo o subcontinente. Alice Albinia concedeu entrevista exclusiva, por e-mail, para a Gazeta do Sul.

LEIA TAMBÉM: “InfiniMundo”: filme gravado no interior de Santa Cruz e Sinimbu ganha trailer; assista

Publicidade

Três mil quilômetros de história e cultura

O conteúdo que Alice Albinia compartilha com seus leitores em Impérios do Indo decorre das observações que fez in loco durante a sua viagem, que compreendeu mais de 3 mil quilômetros percorridos, envolvendo uma das regiões mais populosas e conflituosas do planeta. Ocorre que o Indo, ainda que para sempre esteja associado à Índia, após a partição promovida pelos ingleses em 1947, quando estes deixaram o subcontinente (que ocuparam, como Raj, desde 1858), flui quase integralmente em território do Paquistão.

Por isso, Alice viajou até Carachi, capital paquistanesa, para, a partir de lá, percorrer o delta. Depois segue na direção norte, visitando cidades e o meio rural e conversando com as mais diversas comunidades ligadas ao Indo, chamado de “Rio dos Rios”. Conversa com especialistas, religiosos, lideranças ou pessoas comuns, que vivem sua vida em função das águas do Indo. Ingressa inclusive em território afegão, até, por fim, chegar à nascente, nas altitudes do Tibete.

LEIA TAMBÉM: Santa-cruzense produz curta-metragem para mostrar o ponto de vista dos autistas; assista ao trailer

Publicidade

Impérios do Indo, de Alice Albinia. Belo Horizonte: Âyiné, 2022. 492 p. R$ 109,90.

O livro-reportagem e mescla de relato de viagem Impérios do Indo, da britânica Alice Albinia, é de uma atualidade desconcertante para quem reside no Rio Grande do Sul. Guardadas as proporções (a começar pelo tanto em que recua no tempo a ocupação humana no subcontinente), o tipo de exploração a que tem sido submetido o Indo nas últimas décadas envia um recado inquietante aos gaúchos pelo modelo de relação com o Rio Jacuí, bem como com os demais cursos d’água da realidade estadual.

Alice aponta algumas dessas “ações nocivas, depredadoras” e os reflexos inevitáveis que passam a ter sobre a subsistência humana, além dos efeitos climáticos. A jornalista manifesta também curiosidade em torno do Brasil, ao mesmo tempo em que estabelece um primeiro contato de trabalho com a América do Sul. As enchentes no Rio Grande do Sul haviam chegado a seu conhecimento, diante da repercussão na mídia internacional.

LEIA TAMBÉM: Filme apresenta a história da Escola Afonso Rohlfes

Publicidade

Para a tradução das respostas, a equipe contou com a colaboração do tradutor Guido Jungblut.

Alice lançou o livro Impérios do Indo em 2009 pela John Murray Publishers

Entrevista – Alice Albinia, jornalista e escritora

  • Magazine – O título do livro faz refletir que, embora impérios tenham surgido ao longo do Indo, ruíram no tempo, ao passo que o rio permaneceu. Das culturas estabelecidas ali, qual a que melhor lidou com o rio ou melhor cuidou dele?
    Talvez a idade de ouro da interação dos humanos com o mundo natural tenha ocorrido antes mesmo do Neolítico, com os caçadores-coletores nômades do Mesolítico. Eles se moviam pelo mundo sem deixar rastros e adorando em lugares naturais que aparentemente não queriam alterar ou curvar-se a qualquer outra visão que não aquela integral à rocha, à árvore ou ao rio. Infelizmente, estamos muito longe dessa forma de existência na maior parte do mundo. Talvez, através de várias crises, um dia retornaremos a isso forçosamente.
    No que diz respeito ao Indo, alguns dos governos pré-britânicos no curso inferior do rio tinham boas estratégias de captação de água, reunindo e canalizando torrentes sazonais nas colinas, por exemplo. Qualquer coisa pré-imperialismo britânico, na verdade, provavelmente não mexeu muito com o curso natural do rio. É com a mentalidade dos grandes projetos de engenharia do final do século 19 e início do século 20 que o problema realmente começa. Antes disso, sejam as cidades de Mohenjodaro (que eram obcecadas pela água) ou os nômades da era Rigvédica, passando pelo Vale do Indo com seus hinos poéticos de louvor, ou os imperadores mongóis construindo fortes no rio, ou o Guru Nanak adorando-o, ninguém consegue danificar o próprio rio, apenas responder aos seus ritmos e rimas.
  • Qual foi o principal motivador para empreender essa viagem?
    Enquanto vivia em Déli, encontrei uma história política que queria contar, sobre como um rio moldou, nomeou, alimentou e regou diferentes civilizações humanas, e como o próprio rio foi moldado, por sua vez, pelos humanos.
  • Há o paradoxo de que o curso d’água que deu nome à Índia hoje esteja quase todo localizado no Paquistão. Como os dois povos lidam com isso?
    Esse é de fato um dos paradoxos da história moderna no Sul da Ásia; mas quem sabe o que estará acontecendo daqui a cem anos. Com a crise climática, tudo está mudando muito rapidamente…
  • O rio cruza um território altamente sensível, em complexidade que envolve interesses de governos, econômicos e religiosos. É possível vislumbrar algum cenário em que esse ímpeto belicoso seja reduzido ou eliminado?
    Provavelmente, com a crise climática e o aumento da população, haverá guerra… E então talvez toda essa forma de existir como seres humanos cessará, e um modo completamente novo de existência uns com os outros e com o mundo que nos rodeia surgirá. Mas isso pode levar décadas ou séculos, dependendo.
  • O Indo carrega simbologia única inclusive em termos de espiritualidade. O próprio termo Punjabe, uma região que o Indo cruza, significa “cinco rios”, do Indo tributários. Por que a sociedade da região cuida tão mal dele?
    Penso que provavelmente tem muito a ver com o imperialismo britânico. Durante muito tempo, a sociedade e seus recursos naturais foram geridos por pessoas que sentiram a necessidade de explorar os rios e outros fenômenos naturais para obter o máximo ganho econômico, e não tinham qualquer sentimento emocional ou conexão espiritual com esse mesmo ecossistema. É um modelo que se tornou muito prevalente em todo o mundo. Quer tenha sido coincidência ou não, parece ter sido inventado, encorajado e ampliado pelo colonialismo.
  • A certa altura de seu livro Impérios do Indo, o leitor depara-se com uma segunda jornada dentro da jornada maior ao longo do rio, que é o esforço de refazer os passos de Alexandre, o Grande. Como foi a sensação de localizar o ambiente no qual ele se movimentou?
    Foi salutar refletir sobre como um líder político infame como Alexandre se sentiu humilhado pelas monções e pela enchente de um rio. Há lições para todos nós lá.
  • Outra passagem emocionante é a do contato com os registros de arte rupestre e os sítios arqueológicos e religiosos na área montanhosa ao longo do Indo. É possível esperar sensibilidade de parte de autoridades para a riqueza desses sítios e a necessidade de sua preservação?
    Sim, devemos sempre esperar, exigir, esperar sensibilidade e preservação respeitosa.
  • Depois de concluída a sua jornada, o Indo pode constituir uma metáfora da forma como o ser humano lida com o meio ambiente nas mais diversas regiões do planeta?
    Sim, é verdade… Neste momento, o Indo raramente completa o seu percurso até o mar porque muita água é retirada mais acima, desviada por barragens e mais barragens. Ocasionalmente, ocorrem inundações severas, quando há monções muito fortes ou quando as geleiras nas montanhas derretem muito rapidamente. Existem também problemas de poluição e de salinização da água. Na verdade, os rios recebem e ampliam todos os tipos de males humanos.
  • A jornada ao longo do Indo foi também um mergulho na imensa bibliografia sobre a região. Escrever sobre o Indo é uma forma de ajudar a sensibilizar para sua preservação e recuperação?
    Penso que, sim, toda a maravilhosa poesia, música e pinturas que o Indo inspirou trazem esperança de que há bondade na caminhada dos humanos nesta terra, bem como estupidez e destruição.
  • Alimentas algum projeto similar em relação a outras regiões no planeta?
    Estou começando agora um novo trabalho sobre solo e fertilizantes que me levará ao Chile e, esperançosamente, ao Peru e talvez até ao Brasil. No momento, estou escrevendo um livro infantil sobre ilhas ao redor do mundo associadas a mulheres ou histórias não patriarcais e quero escrever sobre a comunidade Saracá das ilhas do Rio Negro… Caso você ou algum leitor possa me colocar em contato com pessoas de lá, ficaria muito grata!
  • Moraste em Nova Délhi. Ainda manténs contato regular com a Índia? Como vês o papel da Índia em relação ao futuro e sua relação com o ambiente no qual se insere?
    A Índia passou recentemente por momentos muito difíceis com o seu governo hindu de extrema-direita, sem dúvida o mais difícil desde a Independência, e há uma enorme euforia entre as pessoas que conheço na Índia, agora que Modi perdeu a maioria no parlamento. A Índia tem uma constituição secular forte, que se baseia na sua longa e variada história, e esperamos que seja protegida pelo resultado das recentes eleições.
    Tal como em outras partes do mundo, se os líderes indianos fossem menos motivados pelo desejo de reestruturar massivamente montanhas e rios e, em vez disso, ouvissem a sabedoria mais serena das suas vozes indígenas, as pessoas poderiam encontrar alguma paz com o belo ambiente em que elas vivem… Mas quase todos os humanos querem o que há de mais moderno e não serem privados de escolha, como muitos indianos sentiram que estavam durante as décadas anteriores à liberalização da economia, por exemplo. Filosófica e eticamente, é muito complicado. Provavelmente, as enormes crises climáticas serão a nossa professora. Todos teremos que aprender a viver com menos.
  • Como é o contato com o continente americano? Algum projeto em relação à América do Sul? Se sim, qual, e o que o motiva?
    Minha relação com a América do Sul está florescendo neste momento! Estou aprendendo espanhol e viajando para o Chile e começando a estudar a história peruana do século 19, e a ler e ouvir o mais amplamente possível. Todas as sugestões sobre como me educar seriam recebidas com gratidão! Por enquanto, não domino o português, mas tenho ouvido Caetano Veloso e Flavia Coelho e outros…. Até agora, a música é meu guia.
  • O que conheces do Brasil ou como enxergas esse país e sua cultura a partir de sua realidade?
    Estou com muita vontade de ir para o Brasil. Tem a Amazônia e seus povos e toda aquela sabedoria vegetal que ainda não foi destruída, como foi em outras partes do mundo. De onde estou, parece que o Brasil é uma fonte de esperança e perigo, que o futuro do mundo está em suas mãos.

LEIA MAIS NOTÍCIAS DE CULTURA E LAZER

Chegou a newsletter do Gaz! 🤩 Tudo que você precisa saber direto no seu e-mail. Conteúdo exclusivo e confiável sobre Santa Cruz e região. É gratuito. Inscreva-se agora no link » cutt.ly/newsletter-do-Gaz 💙

Publicidade

Heloísa Corrêa

Heloisa Corrêa nasceu em 9 de junho de 1993, em Candelária, no Rio Grande do Sul. Tem formação técnica em magistério e graduação em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Trabalha em redações jornalísticas desde 2013, passando por cargos como estagiária, repórter e coordenadora de redação. Entre 2018 e 2019, teve experiência com Marketing de Conteúdo. Desde 2021, trabalha na Gazeta Grupo de Comunicações, com foco no Portal Gaz. Nessa unidade, desde fevereiro de 2023, atua como editora-executiva.

Share
Published by
Heloísa Corrêa

This website uses cookies.