Tramita na Câmara de Vereadores de Santa Cruz do Sul um projeto de lei que assegura aos candidatos negros 20% das vagas em concursos públicos. Encaminhada pelo próprio Executivo, a matéria, se aprovada, colocará o município nos mesmos moldes de Vera Cruz, que, no último processo seletivo, reservou parte dos cargos para a comunidade negra e parda.
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A discussão sobre qual modelo de inclusão social seria mais adequado é antiga. E Santa Cruz do Sul deverá pautar em breve novos debates. É porque vereadores avaliam apresentar um substitutivo ao projeto de lei encaminhado pelo governo. A ideia é substituir as cotas raciais por cotas sociais – ou seja, usar como critério a renda e não a cor da pele. Hildo Ney Caspary (PP) é quem está à frente dessas articulações e acredita que as pessoas menos favorecidas devem, sim, ter oportunidade. Pondera, entretanto, que todas as etnias que não tiveram as mesmas condições de acesso a estudo e trabalho devem ter direito à reserva das vagas.
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“A ideia é favorecer os que não conseguiram emergir, mas isso me leva a acreditar que todos os grupos que participam do crescimento deste País devem ter a mesma chance. De maneira alguma os negros pobres serão excluídos”, explica. Para embasar esse argumento, o parlamentar acrescenta que vem estudando modelos aplicados de cotas sociais em grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo. “Estamos estudando, discutindo e ponderando sobre qual é o melhor caminho para a sociedade.”
A pauta, que deverá movimentar o legislativo municipal até o fim do ano, reacende um debate que atravessa a década: qual é o caminho para as cotas? A Gazeta do Sul mostra, nas próximas linhas, um panorama de argumentos e visões sobre o tema.
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Entender para discutir
A professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Caroline Müller Bittencourt, avalia que ainda existe muita desinformação sobre as cotas no Brasil, pois grande parcela da população acredita que o sistema promove “injustiça” e traz condição de desigualdade. Ela observa, porém, que as cotas incidem justamente naquela parte da população que já se encontra em condição de desigualdade.
Para a presidente do Comitê de Direitos Humanos da universidade, é de extrema importância conhecer e distinguir os objetivos de ambas as políticas públicas, já que elas “atacam” diferentes desigualdades. Enquanto a cota social se refere ao perfil econômico e às condições materiais de acesso ao estudo e cultura, as raciais têm relação com o racismo e o preconceito.
“Se a sociedade não enfrentar esse problema que é estrutural, cultural e histórico, ainda que pessoas negras, pardas e indígenas tivessem as mesmas condições materiais e formação de uma pessoa de cor branca, se o problema for preconceito racial, elas não teriam as mesmas oportunidades no mercado de trabalho.” Na visão de Caroline, não há como enfrentar o racismo negando sua existência. “Reconhecê-lo é o primeiro passo para o enfrentamento.”
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Cota racial é lei
Às vésperas do Dia da Consciência Negra, celebrado nesta terça-feira, 20, a doutora em Direito Caroline Müller Bittencourt lembra que reservar 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para pessoas negras é lei no Brasil desde 2014. “O Supremo Tribunal Federal também julgou constitucional, por unanimidade, a políticas de cotas nos concursos para o critério de negros e pardos.” Ignorar a lei 12.990/2014 e a decisão do STF, na visão da pesquisadora, é dar margem a uma série de demandas judiciais.
Na esteira desse processo, é importante entender que as cotas são medidas provisórias. A lógica é que, quanto mais negros estiverem nas universidades e conseguirem uma boa inserção no mercado de trabalho, maiores serão as chances de que as próximas gerações de negros e brancos tenham igualdade de oportunidades.
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Justamente por isso a lei prevê um lapso temporal, ou seja, um período necessário para alcançar um melhor equilíbrio social. “As ações afirmativas não são a melhor opção, mas são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres”, disse a ministra Carmem Lúcia, na ocasião em que julgou constitucional a política pública para os negros.
Histórico de racismo exige política específica, avalia professor da UnB
Professor da Universidade de Brasília (UnB), primeira instituição de ensino superior pública no Brasil a adotar as cotas raciais (em 2004), Manoel Barbosa Neres lamenta que as políticas em favor do segmento negro sejam vistas com desconfiança no País. “Aí vem aquela pessoa e diz que é preciso entrar pela questão do mérito. Mas para o mérito existir tem de haver um suporte coletivo e cultural, o que não acontece no nosso País em relação aos negros”, comenta.
O docente, que também é responsável pela Coordenação da Questão Negra da Diretoria da Diversidade da UnB, defende que as ações afirmativas precisam atender às particularidades de cada grupo, seguindo a lógica “diferenciar para incluir.” “Com relação à questão étnico-racial, você precisa trabalhar uma política especifica, uma vez que tem um histórico importante de racismo, preconceito e desvantagens em vários aspectos econômicos, culturais e de acessibilidade.”
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Em resumo, trata-se de uma forma de minimizar a lacuna entre brancos e negros, mesmo 130 anos após a abolição da escravatura. É tornar, conforme afirma seu colega e também professor da UnB, Nelson Inocêncio, a presença negra um pouco mais significativa em espaços historicamente “embranquecidos”. “Há uma dimensão simbólica importante, que é a de ter negros ocupando posições de destaque na sociedade brasileira.”
O exemplo da UnB, lembra Neres, quebrou muitas resistências, como a ideia de que os cotistas abandonariam a graduação ou teriam desempenho inferior aos de alunos não cotistas. “Já se verifica que esses estudantes são tão capazes quanto os demais ou ainda têm um desenvolvimento muito melhor. Nesse sentido, não há dúvida da capacidade dos cotistas, porque eles já demonstraram isso e pesquisas também têm revelado.”
O percentual de negros no ensino superior quase dobrou no período dez anos: em 2005, um ano após a implementação de ações afirmativas, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos de 18 a 24 anos frequentavam uma faculdade. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, 12,8% dos negros na mesma faixa etária estavam matriculados no ensino superior. O número equivale a menos da metade dos jovens brancos com a mesma oportunidade, que eram 17,8% em 2005 e 26,5% em 2015.
Reparação histórica, diz líder do Compir
O presidente afastado do Conselho Municipal da Promoção da Igualdade Racial (Compir), Moacir Fanfa, o Moa, foi uma das lideranças que sensibilizaram o Executivo, em 2017, para que fosse elaborado um projeto com o objetivo de assegurar vagas a negros e pardos. Segundo ele, o Compir, formado a partir de lei municipal de 2006, foi criado para trabalhar pela comunidade negra. “Quando chega vez de o conselho cumprir o que lhe compete e criar uma política que mexe com o sistema, somos barrados? Santa Cruz está atrasada no enfrentamento ao racismo.”
Aprovado em concurso público em primeiro lugar, Moa Fanfa, que trabalha na Guarda Municipal, acrescenta que as cotas raciais são um modo de reparação histórica, uma forma de garantir assistência a um grupo que sente até hoje os reflexos do passado. Sua colega e presidente interina, Elizabeth Rodrigues, complementa que garantir as cotas é assegurar a representatividade dos negros.“Somos 54% da população brasileira, mas na repartição pública em que eu trabalho, por exemplo, enxergo apenas dois negros. É por essa mudança que lutamos. Para aumentar a nossa presença em todos os espaços.”
Manter o benefício aos negros e ampliar para outros grupos
Ainda em 2006, época em que se discutia a Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial no Brasil, um grupo de mais de 120 intelectuais assinou um manifesto contra a reserva de vagas por critério racial. Nomes como o cantor Caetano Veloso, o poeta Ferreira Gullar, o sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Bernardo Sorj, e a antropóloga e professora emérita da Universidade de São Paulo (USP), Eunice Durham, concordaram que a adoção de identidades raciais não deveria ser imposta e regulada pelo Estado.
“Políticas dirigidas a grupos ‘raciais’ estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância”, dizia o manifesto.
Nesse caminho, o professor do curso de Direito da Unisc e pós-doutor em Direitos Humanos, Clóvis Gorczevski, acredita que a cota social seria mais adequada por atender outros públicos excluídos. “Me parece mais justo designar cota para todos que sobrevivem com o mínimo (os hipossuficientes), assim atenderia cidadãos com qualquer necessidade.” E acrescenta: “Ora, se os negros, em sua maioria, são mais pobres por questões históricas, me parece lógico que eles seriam os mais beneficiados”.
Gorczevski concorda que o racismo é inegável na sociedade e os negros sentem os reflexos do passado até hoje. Pondera, no entanto, que a ação afirmativa racial hoje acaba sendo apresentada mais como uma política de governo, não de Estado. “A questão é que se eu transformar a política racial em social, eu dou o mesmo reconhecimento para os negros e amplio para os grupos mais pobres, como quilombolas, ciganos e até indígenas.”
Ideologia atrapalha discussão
Pós-doutor em Direitos Humanos, o professor Clóvis Gorczevski também critica o fato de a discussão das cotas no Brasil estar mudando de foco. “Tenho a impressão de que a política pública que deveria ser via Estado, no Brasil, foi apresentada como política pública de governo. Isso ideologizou o debate.” O cenário, conforme sua análise, incentiva que muitas pessoas não se posicionem a favor ou contra determinada ação afirmativa, mas a favor de uma ideologia governante.